Ensaios sobre o terror: O mundo fora de si (2014)

Marco Aydos – Setembro de 2014

Edson Di Bernardi - óleo sobre tela - coleção do Autor

Edson Di Bernardi – óleo sobre tela – coleção do Autor

No sé si soy bueno, pero sé decir que no soy el malo

(Don Quijote de La Mancha)

50 dias de guerra em Gaza e não consegui me concentrar em mais um capítulo de minha teoria da prova. Na movida do mundo, o Brasil escolheu fazer parte do problema e não da solução. No começo fui tentado a usar a hashtag do caso Feliciano e dizer “esse governo não me representa”. Que lástima, para não usar palavra mais sonora, ou ‘nomes feios’ como diziam nossos pais, mas isso não é verdade. A maioria dos brasileiros o elegeu e esse governo nos representa. Quantos ele representa, hoje, só a próxima eleição dirá. Um deputado federal enviou uma carta ao embaixador de Israel dizendo que nosso governo não representa todos nós, e isso também é verdade. Eu refiro essa carta a modo de ironia. Será o Capitão Bolsonaro, de direita, o único amigo que Israel conseguiu achar no Brasil? Mas aqui vai também um desafio: o que exatamente significa direita, que quer dizer esquerda? Neste século 21 nós precisamos conversar seriamente sobre o terror. Se Esquerda é sinônimo de absolver o terror, e Direita sinônimo de não compactuar com o terror, eu não tenho vergonha de ser tachado de Direita. Mas na real eu acho que esses dois imaginários não têm muito que ver com o terror. De qualquer modo, deixando para lá algumas convicções de Bolsonaro, essa atitude dele me fez sentir que um político me representou nesse nosso fiasco, e talvez tenha representado muitos outros que por diversos motivos estão calados. Porque o silêncio está do lado de Israel no front ideológico dessa guerra. O consenso do mundo não é verdadeiro, porque não é um consenso livre de dominação.

Acontece que o mundo se apaixonou loucamente pelo Hamas, e não se cutuca onça com vara curta. Essa loucura brota de um narcisismo secundário que ativa o instinto de morte (se eu puder usar com alguma liberdade a terminologia de Freud), e tudo que um neurótico narcisista quer é um palco para aparecer. Mas essa loucura também é um fanatismo de massas, e fanáticos nunca se cansam antes de nós. Por isso resolvi fazer alguma coisa a respeito de mais um fiasco de nossa diplomacia, e oferecer minhas razões para a mensagem do Capitão Bolsonaro. Pretendo empregar meus melhores esforços para deslegitimar esse caso de amor com o terrorismo de hoje. Proponho um novo desafio-do-balde-de-gelo: fazer o nosso melhor para sermos parte de uma solução, e não mais do problema.

Um dos sintomas da loucura do mundo chama-se logorreia, que a wikipedia define como “uma desordem comunicativa expressa pelo excesso de palavreado com sentido comunicativo mínimo e por vezes incoerente”. Shakespeare traduz o problema na voz do Rei, em Hamlet:

My words fly up, my thoughts remain below:

Words without thoughts never to heaven go.

(The tragedy of Hamlet, Prince of Denmark, Act 3, Scene 3, lines 100/1)

(por Millôr Fernandes: Minhas palavras voam/Meu pensamento lhes é infiel/Palavras assim jamais chegam ao céu.)

A banalidade do mal dos que não pensam, de Hannah Arendt, parece útil para compreender isso, mas não chega. O mal não é banal nem nasce da falta do pensar, porque é razão guiada por máximas perversas. Pessoas de pensamento leviano e sem cuidado, no entanto, compartilham essas máximas, para satisfação narcisista, para se tornarem ou continuar a ser celebridades. Mas essas máximas perversas são criadas ou melhor, empregadas, no discurso público, nas nossas chamadas opiniões. Um remédio possível será mudar nossas opiniões em julgamentos. Julgamentos não voam tanto, não são tão leves.

Em seu estudo sobre as “raízes teológicas do julgamento criminal” James Whitman observa como “nossos ancestrais tinham medo de julgar”, porque “eles levavam a sério as palavras de Mateus: Não julgueis, ou sereis julgados!”. Mas “o nascimento da modernidade destruiu essa atitude” (Whitman, 2008, p. 7). Opiniões modernas são como gostos, e gosto não se discute. O filósofo Hegel cunhou a frase ‘minha opinião é minha’ (Meinung ist mine) que é verdadeira. Nós, modernos, nascemos livres com o sagrado direito de expressar nossas opiniões. O que normalmente esquecemos é que não devem existir direitos sem respectivos deveres. E ao não levarmos tão a sério nossos modernos deveres, espalhamos opiniões levianas e descuidadas sobre culpa e inocência. Desde que perdemos a piedade dos antigos, ou o medo do juízo de Deus, a questão moderna é sempre a questão de Hamlet: to be or not to be, julgar ou não julgar. E não sabemos sempre

Whether ‘tis nobler in the mind to suffer

The slings and arrows of outrageous fortune,

Or to take arms against a sea of troubles,

(The tragedy of Hamlet, Prince of Denmark, Act 3, Scene 1, lines 63/5)

(Millôr Fernandes, modificado: Será mais nobre sofrer na alma/ Pedradas e flechadas do destino feroz / Ou pegar em armas contra um mar de problemas – Millôr preferiu ‘o mar de angústias’, só que o mar é de problemas, é o mundo fora de si!)

O que nós sabemos é que o mundo está fora da casinha, e nossa pouca sorte é que nenhum de nós, por si, consegue pôr isso nos eixos. Precisamos de ajuda.

II – Improbidade e loucura

O mundo andou mal do juízo nessa guerra.

Um caso recente: ouço que finos pais de adolescentes privilegiados de uma escola de elite em São Paulo pensam ser injusto dispensar o professor que expôs suas crianças à opinião dele num cartoon agressivo comparando judeus a nazistas. Cartoons com certeza expressam opiniões. Mas nesse caso parecem expressar opiniões políticas. Opiniões políticas convidam os outros a curtir e compartilhar, mas também a fazer algo. Elas são assim ações políticas. E ações políticas podem ser julgadas pelo provérbio: a árvore se conhece pelos frutos. Ressalvado o caso de nossas opiniões serem distorcidas por improbidade, que nem é tão frequente, ações violentas e injustas estão ligadas de perto a julgamentos políticos violentos e injustos.

Então se nos decidirmos a julgar, precisamos começar pela limpeza das causas potenciais de mau juízo.

Jeremy Bentham escreveu, na seção sobre prova circunstancial de seus manuscritos, que as causas de mau juízo são duas: improbidade e loucura. Mas por que nós tão frequentemente cometemos injustiça em nossos juízos sobre culpa e inocência? Aristóteles ensinava: é porque esses juízos estão envolvidos com sentimentos de prazer e dor. E por isso parece não existir limpeza mais difícil do que tirar do chão as ervas daninhas do preconceito generalizado contra Israel. Inteligência e erudição legal não bastam, se o juiz não inspecionar sua alma, não conhecer o que sente. E um complicador a mais é que esse preconceito está associado a raça. É um preconceito racial. 

Proponho avançar um pouco em nossa compreensão do problema a partir dessas duas causas de mau juízo. O antissemitismo é o preconceito racial cristalizado ou congelado numa obsessão. Ele é análogo à improbidade, porque é héxis, ou disposição permanente da alma. E essa improbidade da alma é radical, porque tem raízes fundas no subterrâneo das almas do indivíduo e do mundo. Abusando de novo da terminologia freudiana, podemos comparar essa disposição ao inconsciente: ela vive na eternidade, não conhece história, é indestrutível e incurável.

Agora, ouvindo o barulho ensurdecedor do subterrâneo do mundo, disfarçado de crítica política a Israel, tirei um tempo para repensar isso, e compartilho minha descoberta, que veio da releitura da interpretação de Agnes Heller para O mercador de Veneza de Shakespeare.

 III – Shylock/Israel como o Estrangeiro Absoluto

A filósofa derivou sua interpretação de uma nova apresentação da peça, em Budapeste em 1998, que desenvolveu livremente o fim. “Que Shylock morre, não há dúvida, pois no quinto ato é lido o testamento dele. Mas na apresentação de Budapeste em 1998, irrompe uma chacina (pogrom) onde ele apanha até morrer. Se a gente ler o texto com atenção, e imaginar o modo como o ódio foge do controle numa cena de vingança coletiva, essa interpretação parece muito pertinente” (Heller, 2002, p. 86).

Essa interpretação d’O mercador de Veneza é legítima, mas é mais que outra interpretação, pois nos ajuda a compreender o difícil fenômeno a que chamamos antissemitismo. De fato, eu tinha dificuldade em conceber essa peça como comédia. A filósofa a trata como um drama de assimilação fracassada. Ela observa o amplo cenário das obras completas de Shakespeare e vê algo de novo em Shylock e Othello: enquanto todos os outros personagens políticos são estrangeiros condicionais, esses dois são estrangeiros absolutos. O estrangeiro condicional típico é o exilado, alguém que não está em casa, mas que tem uma casa para onde voltar. O estrangeiro absoluto é um sem-teto no mundo. Por isso Shakespeare encontra para o ‘Mouro’ e para o ‘Judeu’ o mesmo cenário: a cosmopolita Veneza. Mas vejam que Shylock e Othello são estrangeiros aos olhos dos venezianos. Eles mesmos não se vêem assim, e nutrem a tola ilusão de que algum dia serão considerados bons venezianos, se apenas lhes prestarem seus serviços direito. Numa palavra: Othello e Shylock são assimilassionistas, seu mais fundo desejo é serem aceitos como iguais na sociedade dos venezianos. Mas por isso são tolos, pois eles jamais serão reconhecidos como humanos, eles serão sempre tipos. Por isso Shylock é frequentemente chamado não pelo nome, mas como ‘Judeu’. Mas há uma diferença entre eles. Othello é o ‘Mouro’ e pode ser reconhecido facilmente, o que não é o caso de Shylock:

“Toda a interpretação se constrói a partir de uma linha significativa e sempre negligenciada. No ato 4, Portia entra em cena como jurista e pela primeira vez que encontra Antonio e Shylock, ela pergunta: ‘Quem é o mercador aqui, quem é o judeu?’ … Evidentemente, ela não consegue distinguir um do outro pela aparência. Shylock se parece com um mercador de Veneza, ele veste roupas de um patrício veneziano. Nem sua estatura ou seu olhar, talvez nem mesmo sua face, mostram que ele é judeu. Então por que ele é um judeu?” (Heller, 2002, p. 79).

A interpretação da filósofa mudou minha leitura da peça, e gosto mais agora. Eu associava Shylock ao mercador de Veneza do título, mas esse mercador é o patrício Antonio, cujo ódio de Shylock torna-se irracional e obsessivo: “Seu amor por Bassanio também é algo irracional, mas esse amor o motiva à maior generosidade, a estar pronto para morrer pelo amigo, a emprestar-lhe dinheiro para casar com uma mulher, o que selará também o fim da amizade. Que essa relação é homossexual é algo apenas sugerido por Shakespeare, e outra interpretação é possível. Mas que Antonio ama Bassanio o suficiente para promover-lhe o casamento contra os seus mais fortes sentimentos não pode ser negado”. “Para o mercador de Veneza, a peça termina com uma vitória de Pirro. Ele consegue satisfazer seu ódio, mas não seu amor.”

A essência dos estrangeiros absolutos é o olhar do mundo: “o ambiente à volta deles não está interessado neles, não está interessado na pessoa deles, apenas na sua função (desprezível, mas útil).” “Como ser humano, Shylock não existe”. Até Portia, disfarçada de Doutor das Leis, mesmo que apenas para fazer graça, dirige-se a Shylock sem dizer-lhe o nome: “Estás contente, agora, judeu?”. Permitam-me uma longa citação, que é relevante para nossa discussão:

“O gênio de Shakespeare não está em ter feito representar um judeu, mas em descrever um estrangeiro que se transformará em nativo através da radicalização do mal … A frase é tirada de Sartre, que diz que os oprimidos são determinados pela mirada – pelo modo de olhar – de seus opressores, e devem aceitar os papéis que seus opressores lhes determinam. Os oprimidos podem libertar-se apenas se aceitarem como eles são e virarem a mesa sobre seus opressores. Através dessa reversão de olhar, os oprimidos tratarão aqueles que até agora os tratavam como objetos, também como objetos ao invés de sujeitos. Sartre diz, no prefácio a Os condenados da terra, que a radicalização do mal é o único modo pelo qual os oprimidos podem se libertar, não só politicamente mas também psicologicamente, e essa radicalização do mal envolve atos de violência … Bem, eu não aceito essa última conclusão, mas eu cito Sartre apenas para mostrar que é exatamente isso que Shakespeare traz para o palco. Shylock, com uma faca na mão, num acesso de fúria, está prestes a perfurar o coração de seu inimigo, Antonio … Mas Shylock é um judeu, e como tal ele jamais infringiria a lei … No instante em que ele percebe que a lei está contra si, ele larga a faca e assina sua sentença de morte.” (Heller, 2002, p. 83-4).

Shakespeare é nosso amigo e contemporâneo: ele viu o fenômeno que lutamos por compreender ainda no nascimento, e o representou com domínio soberano de sua psicologia. Vale ouvir o modo como Shylock desafia o nosso olhar que o vê como um ‘tipo’ ou uma ‘entidade’, uma pessoa que não merece o direito de ser reconhecida como ser humano, não tem o direito de ter um nome:

– Sim, então eu sou um judeu. Mas um judeu não tem olhos? Não terá um judeu mãos, órgãos, medidas, sentidos, afetos, ou paixões? Não come a mesma comida, fere-se com as mesmas armas, sofre as mesmas doenças, cura-se com o mesmo remédio, sente frio e calor pelo mesmo inverno e mesmo verão, tal como um cristão? Se vocês nos perfuram, não sangramos? Se nos fazem cócegas, nós não rimos? Se nos envenenam, não morremos? E se vocês nos ofenderem, não revidaremos? … (O mercador de Veneza, Ato 3, Cena 1, linhas 40-45, tradução minha).

Palavras memoráveis, que certamente não combinam com uma comédia, mas ficam bem num drama de ilusões, ou melhor, da grande ilusão da assimilação, de ser um dia encarado como igual, como humano. Agora, o que há de novo na eternidade do antissemitismo moderno é a transferência do ódio, do judeu como indivíduo ou coletividade, para o estado de Israel. A ilusão de Israel é de que um dia seria reconhecido como igual, um estado entre outros estados. O choque de realidade diz que o mundo simplesmente não deseja esse reconhecimento. Existe uma disposição permanente no mundo para tratar Israel como Antonio trata Shylock: como um estrangeiro absoluto. Esse é um preconceito que prejudica o conhecimento dos fatos. Mas não é causado por falta de pensamento. Ao contrário disso, ele raciocina, e frequentemente com muita sofisticação.

A filósofa Agnes Heller distingue as perversidades do Subterrâneo e aquelas da Sofisticação, mas elas evidentemente se relacionam entre si. As perversidades da sofisticação são opiniões guiadas por máximas perversas, e são sofisticadas porque há uma inteligência trabalhando para construir um mau juízo como um silogismo aparente, ou sofisma. Mas o que elas alcançam na vida real é ativar aquelas perversidades do subterrâneo. Consequentemente, a explosão de antissemitismo no mundo, desde a velha Europa até a nova Austrália, não aparece grátis nessa história: ela foi ativada por razões. Radicais de profissão, intelectuais frustrados, e tipos assim, alimentaram os antissemitas com o mal, e lhes comandaram fazer algo, então eles simplesmente disseram ‘sim’, violentamente nas ruas.

O protesto recente contra a organização da Bienal de São Paulo nos dá um exemplo perfeito da substituição de papéis, de Shylock para o Estado de Israel. Segundo o manifesto redigido pelo artista palestino de Ramallah, Abou-Rahme, assinado por 61 (em 1/9) entre quase 70 artistas, exigia-se o retorno de patrocínio oferecido por Israel (noticiou-se que dois artistas israelenses também o assinaram, mas isso requer provas, dado o manancial de fatos falsos divulgados na guerra ideológica que apoia o terror). A carta diz que: “Ao aceitar esse financiamento o nosso trabalho artístico exibido na exposição é prejudicado e, implicitamente, usado para legitimar agressões e violações do direito internacional e dos direitos humanos em curso em Israel. Rejeitamos a tentativa de Israel de se normalizar dentro do contexto de um grande evento cultural internacional no Brasil.”

Na essência, esse argumento aparentemente inocente e sublime, disfarçado de crítica à política de Israel, diz que a culpa do Shylock contemporâneo não é assunto para a história, é uma culpa eterna. Por isso, Israel não deve jamais normalizar-se, deve permanecer como o eterno Shylock. A paz é um movimento na direção da normalização. Para esses pacifistas, nunca haverá paz, porque nunca haverá reconhecimento. Todos os estados defendem seus cidadãos contra agressões injustas, Israel não pode, porque Israel não é um estado como os outros. Para alguns árabes, por longo tempo, Israel não merecia ser chamado por seu nome. Era a Entidade. A recente guerra em Gaza mostrou para o mundo a recusa de reconhecimento espraiar-se de Gaza para a recentemente mais moderada Cisjordânia. Um alto dirigente do Fatah exigiu que se considerassem culpados de alta traição os palestinos que apoiassem um jogo de futebol entre meninos israelenses e palestinos, e declarou que: “qualquer atividade esportiva de normalização com o inimigo sionista é um crime contra a humanidade”. Eis aí o barulho ensurdecedor do mundo. Crimes contra a humanidade também viraram palavras banais, e “palavras assim jamais chegam ao céu”.

Mas existirá cura para a loucura do mundo? Primeiro passo é separar os incuráveis dos que ainda têm cura. Vejamos então o pavilhão dos incuráveis.

IV – Perversidades da sofisticação – perversidades do subterrâneo

A recente guerra em Gaza soltou todos os demônios para violência antissemita por todo o globo. Isso prova que o mundo tende a odiar Israel. Mas também prova que qualquer guerra que envolva Israel se desenvolve em dois campos de batalha. Um deles é o campo de operações militares, e essa é uma guerra local ou regional (que tenderá para uma guerra mundial, se o Irã desenvolver arsenal nuclear). O outro é o front ideológico de uma guerra mundial. Vitória e derrota têm significados distintos nesses dois cenários. Antissemitas incuráveis, por todo o globo, engajam-se nessa guerra em duas frentes: comando e artilharia pesada. Os estrategistas desenvolvem sua violência em máximas perversas, que são perversidades da sofisticação, e operam como comandos para ser executados pela artilharia pesada nas ruas. Bem, os dois tipos de violência precisam ser estancados. Mas eu acredito que existe uma alternativa melhor para a “radicalização do mal” de Sartre. Penso que essa alternativa é a violência da lei: manifestações antissemitas nas ruas não são exercícios de direitos e devem ser consideradas ilegais e sofrer as sanções de lei. Nenhuma lei que permita a persecução penal de discursos de ódio deve ser considerada ‘liberticida’, como pretendem alguns intelectuais franceses. Mas os altos oficiais são malfeitores da razão sofisticada, que também devem ser enfrentados no front que eles escolheram: a contraviolência aqui exige a crítica pública para deslegitimar esses intelectuais do antissemitismo. Essa é uma guerra difícil, por isso precisamos ajudar uns aos outros. Vou ilustrar o problema com um exemplo. Estive em Buenos Aires durante essa guerra, e lá encontrei um livro escrito por Élizabeth Roudinesco, autora judeo-francesa que escreve ensaios interessantes sobre a chamada questão judaica em intersecção com a psicanáliseEla ilumina temas difíceis para quem não tem experiência do problema, como a questão do auto-ódio judaico, e analisa exaustivamente o caso Noam Chomsky. Mas por incrível que pareça, não enxerga nada de antissemitismo no panfleto de Edgar Morin (Roudinesco, 2009, p. 252, 253), que para mim é um manifesto de belicismo explícito que considera Israel o câncer do Oriente Médio, e termina associando-se a intelectuais e juristas franceses que atacam a Loi Gayssot, que tornou possível processar o antissemitismo, dizendo que nesse terreno quanto mais liberdade, melhor (Roudinesco, 2009, p. 240-1). Mas não é nada disso (analisei exaustivamente o caso Morin em artigo republicado no blog como Ensaios sobre o terror: Caricaturas e Metáforas, 2006). O fato é que o mundo enlouquecido simplesmente adora encontrar essas aves raras como um discurso antissemita apresentado por um judeu. A política identitária tende a endossar um discurso autoritário segundo o qual apenas a auto-representação é verdadeira ou autêntica (o que leva ao absurdo de que apenas a vítima sabe o que é racismo, como pretendem alguns militantes). Para esse discurso autoritário, um judeu falando mal de Israel falará provavelmente mais verdades que todos os outros que defendem Israel, judeus ou não-judeus. É por isso que o circo permanece armado para um doido como Noam Chomsky. Por aqui, alguém entrevistado como um intelectual judeu e brasileiro, disse que tinha vergonha de Israel e disparou a hashtag da hora: “as forças de defesa de Israel não me representam”. Mas isso é a pura verdade. O governo eleito de Israel não representa os judeus da diáspora, e nem deve, porque ele representa os cidadãos de Israel que vivem por décadas sob terror. E o exército de Israel simplesmente obedece ao Estado de Israel. Ponto final. Mas o caso ilustra talvez o auto-ódio judaico, associado ao fracasso da assimilação. O mundo insulta-os chamando de nazistas. E ninguém gosta de ser insultado. Mas poucos compreendem a maldade do insulto: o fato de que a vítima sente vergonha de ser vítima. Nós tendemos a parar e perguntar ‘o que eu fiz para ser tão odiado?’ E quando nenhuma resposta razoável aparece, a não ser um sonoro ‘nada’, nós tendemos a aceitar o olhar do mundo: sim, os judeus provavelmente são tão odiosos quanto foram os nazistas. Para o nazismo, a existência dos judeus era uma problema de possível solução: o extermínio. A máquina de morte foi inventada para a solução final: Endlösung (a essência de Auschwitz é sua causa final). O fato de que esse insulto nunca aparece num argumento completamente desenvolvido me diz algo sobre ele: o mundo simplesmente ainda vive sob o fascínio da invenção de Adolf Hitler. O caso é que o antissemitismo é um tipo de ódio transformado em obsessão, e por isso desenvolve uma imaginação política bem pobre. Depois de algum treino, percebemos que o arsenal dos antissemitas não se desenvolveu muito desde Os protocolos dos sábios do Sião.

Mas bem que o insulto ganhou uns upgrades sofisticados. Um desenvolve o argumento somando a recusa ao reconhecimento de Israel à negação do Shoah: para os antissemitas contemporâneos, a máquina de morte não foi inventada para matar judeus, ou, como eles dizem, apenas para os judeus. Ela sofreu uma reinterpretação multiculturalista que diz que foi inventada para os indesejáveis em geral, como homossexuais, ciganos, comunistas e, bem, também os judeus. Evidentemente essa narrativa prossegue ou sugere que os judeus lucraram com isso tudo, porque uma comunidade internacional envergonhada lhes deu de presente um Estado, uma invenção do mundo para contrapartida àquela invenção de Adolf Hitler. Agora, o caso é que eles são ingratos e deveriam ser mais humildes, como Shylock, e pararem de revidar qualquer tapinha. Para a esquerda francesa, que batizou o antissemitismo de “l’intolérable chantage“, Israel é o eterno Shylock na profissão de usurário: nesse upgrade, dizem, os judeus não se inibem de usar seus seis milhões de mortos como chantagem para fazer o que bem querem na Palestina. O antissemitismo francês de intelectuais de esquerda, judeus e não judeus, com má consciência pela Argélia, também desenvolveu a falsa analogia da colonização. As colônias europeias foram uma agressão injusta contra a qual os nativos tinham direito à guerra justa para se libertarem. Mas agora, os colonizadores europeus eram estrangeiros condicionais nas suas colônias, e podiam bem encerrar a guerra voltando para casa. Mas o Shylock contemporâneo é um estrangeiro absoluto, e não tem uma casa de retorno. Que se passa então? O que se passa é que a natureza maniqueísta da colonização, formulada por Frantz Fanon em seu endosso da violência (Fanon, 1963, p. 41), simplesmente não se aplica ao Oriente Médio. Porque aí não existe uma solução possível do tipo “nós ou eles”: há que se aceitar que aí somos “nós e eles” e nossa opção é mais limitada: é a guerra perpétua ou algum tipo de paz.

Mas deixem-me olhar um pouco para o pavilhão dos curáveis.

V – Orgulho e preconceito

A seção dos curáveis tem maior densidade populacional. Os antissemitas gritam mais alto, mas eles são como os altos oficiais do terror, uma elite que oprime seus alegados constituintes. Aqui encontraremos as chamadas celebridades. Para o benefício da cura, diremos que elas não são ainda antissemitas. São apenas levianas e descuidadas. Uma terapia possível para elas será a leitura, em público, das tolices que assinaram sem ler, e alguma explicação sobre suas raízes naquela região da alma do mundo que obedece ao instinto de morte. Essas celebridades com certeza não querem ver seus nomes associados ao discurso de ódio, seja porque no fundo têm um coração bom e foram apenas tolas, seja porque não querem perder prestígio neste mundinho cão. Mas suas razões aqui não importam.

Deixem-me elaborar um pouco mais sobre esta seção. O antissemitismo é o preconceito racial que, transformado em héxis ou disposição permanente, tornou-se incurável. Mas existe um preconceito racial que podíamos chamar de normal. Os dois se desenvolvem segundo diferentes princípios motores. Antissemitas são movidos por razões ignóbeis, ainda que desconhecidas deles ou inconscientes, e não faz diferença se elas têm raízes na (homo)sexualidade reprimida ou em outras frustrações, intelectuais ou sociais. Mas existe um preconceito contra Israel que é ativado por sentimentos e ideais nobres, por convicções sinceramente defendidas e entusiasmo pelo bem, normalmente seguindo o imperativo de que devemos emprestar nossas armas para a causa justa, devemos tomar o partido dos condenados da Terra contra a opressão. O problema é que acontecem loucuras nesse terreno. O antissemitismo é perverso, mas preconceitos são apenas ruins, pois que relativamente normais. Todos nós temos preconceitos, e a única coisa boa a dizer deles é que eles são curáveis. Quando superamos um preconceito, a gente acha graça de tudo aquilo. Preconceitos são coisas humanas, e como tais são assunto para comédias, não para dramas ou tragédia. Uma boa terapia contra os preconceitos correntes contra Israel é o aparecimento do objeto do nosso ódio em carne e osso. Parafraseando Shylock, perguntaríamos: será que essas crianças não são iguais às nossas? Elas também não fazem o desafio do balde de gelo? Na comédia de Jane Austen, a palavra Orgulho aparece ao lado da palavra Preconceito. Uma novidade boa nessa guerra foi o aparecimento de paradas de orgulho judaico. Essas paradas dizem algo como: somos judeus, e temos orgulho disso, vejam, como somos também humanos.

Eu conheço bem esse preconceito, porque um dia eu nutri um tipo de pré-juízo contra Israel. E eu tinha orgulho desse meu preconceito. Não sabia de coisa nenhuma, mas nesse orgulho eu tinha soluções de bolso parecidas com o “vírus da paz” do nosso ex-presidente. Que era muito mais fácil atacar Israel que conhecer os fatos em julgamento, descobri só bem depois. Mas uma coisa boa da psicologia dos preconceitos é que esse orgulho besta pode desaparecer. Isso também é posto em cena por Jane Austen, em Orgulho e preconceito, no personagem Darcy:

“Quando criança me ensinaram o que era direito, mas não a corrigir meu temperamento. Deram-me bons princípios, mas deixaram-me segui-los com arrogância e orgulho … Assim eu fui, dos oito até os vinte e oito; assim eu seria ainda, se não fosse por você, querida, amadíssima Elizabeth! Quanto te devo! Você me ensinou uma lição, dura no começo, mas do maior proveito. Por você, eu me fiz enfim humilde” (Austen, 2007, p. 460, tradução minha).

Jane Austen mostra-nos essa verdade sobre o preconceito: ao contrário da ilusão da Ilustração, ele não pode ser vencido com a razão, apenas por uma paixão contrária e mais forte. Por amor, Darcy se fez humilde e venceu seu orgulho; por amor, Elizabeth superou seus preconceitos em relação a ele. Agora, digo-lhes como foi meu caso: eu fui um dia orgulhoso e tolo como Darcy, mas venci meu orgulho por amor à justiça.

Agora, se alguém pergunta como esse caso pode ser instrutivo, como alguém pode apaixonar-se pela justiça, eu lhes pergunto de volta: será que podemos amar alguém que sequer conhecemos? E o que nós sabemos sobre justiça nas guerras? Talvez existam outras terapias, mas eu acredito que podemos fazer juízos mais justos e melhores sobre as guerras se não começamos a olhar os fatos antes de termos clareza sobre quais são os nossos padrões de julgamento. E precisamos também de pelo menos uma definição formal de justiça. Eu compartilho então com vocês meu pacote de padrões, caso seja útil para alguém.

V – Jus ad bellum e jus in bello

A filósofa nos fornece uma fórmula que é fácil de aprender e memorizar: “o conceito formal de justiça significa a aplicação contínua e consistente das mesmas normas e regras para todo e qualquer membro de um grupo social para o qual essas normas e regras são aplicáveis”. Inconsistência aqui quer dizer a aplicação de “duplos padrões. Isso é atribuível ao preconceito social (eventualmente ideológico)” (Heller, 1987, p. 5, 9). Mas então, que normas e regras são aplicáveis às guerras?

Até essa guerra em Gaza, eu pensava que nada melhor tinha sido inventado depois dos termos tradicionais da doutrina da guerra justa. Agora, acredito que Walzer adiciona à tradição um terceiro termo relevante, o jus post bellum. Refiro apenas o suficiente para o caso em questão, e remeto-os às fontes: Walzer, Guerras justas e injustas (disponível em português) e o mais recente, Arguing about war, e o capítulo sobre guerra justa e injusta do livro de Heller sobre a justiça (Além da justiça, com tradução ruinzinha, mas legível). Vejamos alguma coisa sobre os termos.

(1) Justa causa para guerra ou jus ad bellum. Deixando de lado os casos mais complexos de guerras por razões humanitárias, e aquelas que Heller define como apenas condicionalmente justas, em geral guerras justas (absolutamente) são guerras de legítima defesa contra agressão atual ou iminente. Uma guerra defensiva não implica que o agressor sempre tenha que atirar primeiro, pois a defesa pode decidir-se por um ataque preemptivo. Guerras injustas (absolutamente) são guerras de conquista ou “engrandecimento econômico”, que são “atos de roubo – de soberania, de território, de recursos” (Walzer, 2004, p. 163).

(2) A conduta justa na guerra, ou jus in bello, requer a observância de algumas interdições. Em princípio, são alvos legítimos de guerra o pessoal militar e instalações militares, devendo-se poupar as vidas de civis e seus meios de vida. Isso não significa, porém, que inocentes não morrerão em guerras, apenas que eles não devem morrer como alvos deliberadamente atingidos nessa guerra.

Antes de examinar os fatos do caso, permitam-me uma observação. Nenhuma teoria ajuda se nós tivermos preconceitos muito fortes, mas uma teoria de guerra justa ajuda precisamente nesse terreno, porque ela refina nossa sensibilidade para o caráter único de cada situação, e isso é de especial ajuda no julgamento do jus in bello. Porque seremos convidados a pensar em circunstâncias extraordinárias que ocorrem em guerras modernas, uma das mais relevantes sendo a ausência de espaços para separação de combatentes e civis. Também seremos convidados a formular perguntas que podem evitar a injustiça dos duplos padrões, a pensar em ‘como o exército de qualquer outro estado do mundo se comportaria diante desse específico front?’. A pergunta é obviamente artificial, mas a mensagem de justiça formal que ela carrega consigo não é. Agora quero falar brevemente do terceiro termo introduzido por Walzer.

VI – Jus post bellum

A justa conduta no pós-guerra não recebeu a atenção merecida da tradição. As consequências de uma guerra podem envolver a ocupação de território dos vencidos.  Uma justa conduta no pós-guerra implica que essa ocupação é legítima no interesse de evitar a renovação do mesmo tipo de agressão, mas depois que esse risco é neutralizado, esse território deve ser restituído, sob o princípio de autodeterminação igual para todos. Isso não está em questão, mas sim o tempo e as condições para essa devolução. Temos um caso recente de responsabilidade dos E.U.A sob a administração Obama, por terem possivelmente abandonado cedo demais o cenário de guerra no Iraque. Como os outros dois termos, não existem aqui regras rígidas, mas máximas. O que deve ser ponderado é a situação. No tema sensível da duração de cada ocupação, Walzer escreve: “o cronograma para autodeterminação dependerá fortemente do caráter do regime anterior e da extensão de sua derrota” (Walzer, 2004, p. 165).

Agora, podemos começar nosso julgamento.

VII – Para que serve um estado?

Primeiro ponto a decidir é se as teorias de guerra justa são aplicáveis ao caso. Aparentemente elas não seriam. “Teorias de guerras justas cobrem o grupo social de ‘todos os estados soberanos'” (Heller, 1987, p. 217). E não existe um estado palestino soberano. Na realidade, uma das soluções de bolso daqueles que espalham o vírus da guerra, disfarçado de vírus da paz, é que Israel deve aceitar a chamada solução dos dois-estados, como se Shylock/Israel fosse a única parte culpável por essas guerras. Eu prefiro ver os fatos políticos do jeito que eles aparecem. Aparentemente, o que temos são três-estados e solução nenhuma: Israel, Cisjordânia e Gaza.

Agora, pelo menos temos algo concreto para corrigir: a descrição dessa guerra, que a mídia nos vendeu como uma guerra (ou mais um capítulo de uma alegada guerra eterna) entre Israel e os palestinos. Israel reivindica que não luta contra os palestinos que vivem em Gaza, mas contra o governo de Gaza, que atende pelo nome de Hamas. Penso que uma descrição mais justa das partes em guerra é esta: Israel x Hamas. O Hamas, como governo de Gaza, alegadamente deu a Israel justa causa para guerra. Gaza é o cenário dessa guerra, de outro modo Israel não poderia lutar contra o Hamas. Mas será Gaza um estado? O que é um estado?

Nós, modernos, falamos de estados na linguagem dos direitos de autodeterminação e da busca do bem-estar dos cidadãos, mas costumeiramente esquecemos aquilo para que servem os estados. Estados servem para garantir a vida e a liberdade dos cidadãos. Eu encontro alguma ajuda num ensaio do jovem Hegel sobre A constituição alemã. Ele pensava então que a essência do estado está em possuir ou não possuir um exército, e que: “Uma multidão de seres humanos só pode chamar-se de estado se estiver unida para a defesa comum da integralidade de sua propriedade … por armas reais, seja esse poder e seu sucesso o que forem” [tradução livre, do inglês] (Hegel, 1964, p. 153). Aqui temos um bom começo: ter um exército é essencial num estado, seu poder ou seus sucessos são acidentais.

Do modo como vejo a situação, o Hamas é o exército de Gaza. Assim, Gaza qualifica-se como um estado. Mas será um estado soberano? Todas as respostas a minhas perguntas são discutíveis. Quero deixar claro, desde logo, que argumento na direção favorável à aplicação das teorias de guerras justas, e assim eu posso incorrer em falta por aumentar ou reduzir o conceito de estado. Na minha opinião, Gaza qualifica-se para o grupo ‘estados soberanos’ a partir do instante em que mostrou para o mundo que por sete anos esteve preparando-se para uma guerra. E a soberania que conta aqui é a capacidade de um estado para decidir sobre temas de guerra e paz. Eu observo também que mesmo um estado de soberania limitada ainda é um estado, se decidir fazer a guerra contra outro estado. Assim, para o nosso limitado fim, Gaza qualifica-se como estado soberano e as teorias de guerras justas parecem aplicáveis.

Agora, quero esclarecer alguns temas que indiretamente estão envolvidos no caso. A guerra dos Seis Dias, e suas consequências, o terrorismo, e os dilemas envolvidos numa possível guerra contra o terrorismo.

VIII – 1967

Quero começar minha discussão voltando a 1967.

Algumas guerras são resultado de outras guerras que terminaram mal, sem uma paz justa. É esse o caso agora. Deixando responsabilidades de lado, o fato é que cinco décadas se passaram e não bastaram para selar um acordo de paz justo entre todas as partes beligerantes na guerra dos Seis Dias. Por tal razão, e para melhor limpeza do terreno de preconceitos correntes, é útil julgar essa guerra em primeiro lugar. Eu tinha só uma vaga ideia dessa guerra, e tirei minhas férias, enquanto o fogo corria solto em Gaza, para instruir-me melhor. Li uma reportagem que é um clássico do gênero, combinando domínio rigoroso das fontes com probidade intelectual, e ainda uma narrativa que literalmente nos transporta para o teatro de operações: refiro-me ao livro de Michael Oren, Seis dias de guerra. Aquela foi uma guerra no sentido clássico da palavra no que se refere ao jus in bello. As partes beligerantes decidiram lutar em cenários para a guerra, decidiram poupar civis e não sacrificar sítios sagrados. Todas as partes ali lutaram uma guerra justa no que se refere ao jus in bello. Isso não torna o caso muito melhor para Nasser e para o Egito, que foram os principais atores na preparação de uma guerra absolutamente injusta contra a existência do estado de Israel, mas faz do evento um épico. Mas naquilo que diz respeito à justa causa inicial da guerra, aquela guerra não foi igual para os dois lados. A liga de estados árabes foi à guerra por causa do proselitismo político (basicamente, pelo Nasserismo, uma ideologia poderosa desenvolvida a partir do carisma pessoal de Nasser). E o proselitismo, como Heller sabiamente observa, é uma das principais causas de guerras injustas. Aquela guerra foi causada pela fantasia do pan-arabismo, mas também para resgate da autoestima dos palestinos. Agora, todo mundo deve conhecer essa dramática realidade: que o sonho judaico de uma terra para chamar sua corresponde ao outro lado da moeda do pesadelo palestino. Os sentimentos que os palestinos resumem na palavra Nakba podem com justiça ser tomados como consequência da criação do estado de Israel. Mas eu acredito que Nakba congelou-se numa ideologia de ódio permanente e eterno, e nesse sentido é parecida com o terror: é o discurso tirânico de uma elite que instrumentaliza os sentimentos da massa dos cidadãos. Eu acredito que Nasser instrumentalizou os sofrimentos dos palestinos em 1967, e que o Hamas em 2014 repete os passos do Nasserismo nessa questão, isto é, tanto um como outro jamais ligaram muito para a liberdade, a vida e o bem-estar daqueles palestinos que vivem , no exato cenário das guerras deles. Nasser e Hamas, de um lado, e os ideólogos do Grande Israel, que sonham com um estado nos limites definidos pelo Bereishit ou Livro do Gênesis, são dois lados da moeda de fantasias políticas congeladas em ódio e recusa de reconhecimento da existência do outro. Ambos desejam “tudo para eles” (para empregar, mais uma vez, uma expressão de Walzer). (Agora, permitam-me deixar isso claro, não há evidências de Israel jamais ter feito uma guerra para tornar real essa fantasia.) Em síntese, a guerra dos Seis Dias foi uma guerra injustamente causada pelos árabes, mas uma guerra justa e uma vitória justa para Israel. E essa guerra trouxe como consequência a ocupação de territórios dos vencidos. Hoje muita gente de boa fé pensa que nessa guerra Israel foi o invasor. O caso é que Israel de fato iniciou a guerra, em sentido militar, com um bombardeio monumental que virtualmente destruiu a força aérea egípcia, assim como é verdade que aparentemente Israel adquiriu territórios. Então todo mundo pensa que Israel começou uma guerra injusta para engrandecimento territorial. Mas isso está longe de ser verdade. Uma guerra justa não se define por quem atira primeiro. Historiadores dos povos árabes, como Albert Hourani, dizem pouco sobre as causas da vitória israelense, ao creditarem essa vitória apenas à superioridade militar (Hourani, 1991, p. 414). Isso não é toda a verdade e não diz todo o essencial para o terceiro termo introduzido por Walzer: que implica a necessidade de julgar as responsabilidades pela paz no pós-guerra. Aquela foi uma guerra típica e clássica de autodefesa contra agressão injusta e iminente. E o que decidiu a vitória, que foi dramática e adquirida em cada hora daqueles seis dias, foi a conduta dos soldados no front. Os egípcios simplesmente não sabiam por que morriam, e o que se viu foi uma formidável leva de deserções (eles sentiam que morrer pela carreira política de Nasser não era justa causa para morrer, que morrer pelo Nasserismo ou pelo pan-arabismo era o mesmo que morrer por uma ideologia). Do lado de Israel os soldados lutaram e morreram pela vida e pela liberdade de seus filhos. Agora, o primeiro termo da guerra justa é decisivo sempre que tivermos que decidir sobre o destino dos territórios ocupados depois da guerra. Temos aqui um caso clássico de jus post bellum. A ocupação dessas terras foi absolutamente legítima, e isso não contradiz o fato de que essa ocupação deveria ser temporária. Mas então o que regula o cronograma e as condições para a devolução do território ocupado?

Numa leitura rápida, diríamos que esses territórios deveriam ter sido devolvidos no exato dia de publicação da Resolução 242 das Nações Unidas. Talvez existam juristas que defendam essa leitura, mas advogados e juristas discutem palavras sem pensar muito, porque simplesmente não lhes ensinaram a pensar. A mim parece ridículo discutir se o texto verdadeiro da Resolução está redigido em inglês ou em francês, por exemplo. A equação do problema ficará mais razoável se nos aproximarmos dele a partir do termo jus post bellum. Israel sofreu um ferimento fundo por causa absolutamente injusta, e perdeu, em números per capita, o equivalente às vidas de 80 mil norte-americanos (Oren, 2003, p. 362). Guerra não é um jogo e nem brinquedinho. Israel jamais fez uma guerra para ganhar terras, mas adquiriu, depois de bravamente derrotar uma liga injusta de estados inimigos, o direito legítimo de dizer algo sobre sua segurança, na direção de não sofrer no futuro previsível, uma renovação daquele injusto estado de beligerância. Parece-me óbvio que o cronograma para devolução das terras, nesse caso, deve obediência às condições oferecidas pelos vencidos para um prognóstico sério de paz. A equação é simples: Terra por Paz. Eu não inventei isso, e com certeza muitas autoridades em direito internacional poderão defender esse ponto de vista com razões jurídicas. A experiência comprova o acerto da tese. O Egito e a Jordânia fizeram a paz e receberam territórios de volta. Mas os palestinos, por longo tempo, não admitiram selar a paz com a Entidade, com o Inimigo Sionista.

Convenhamos que Israel cometeu muitos erros políticos no seu relacionamento com seus vizinhos, o mais grave deles sendo o movimento de colonos, insuflados no governo de Sharon. Não só por conta desses erros políticos, mas pela artificialidade ou pelos erros políticos da partição original da Palestina na chamada Linha Verde, e pelo tempo que foi passando, e pela realidade hoje de três estados e nenhuma solução, tudo isso tomado em conjunto me dá a intuição de que o retorno puro e simples às fronteiras de 1967 é apenas uma fantasia política, não é mais um perspectiva real de paz. Eu acredito que perspectivas verdadeiras envolvem o reconhecimento mútuo e a renúncia absoluta ao terrorismo, e, do lado dos palestinos, o enterro do orgulho ferido que os leva a agir e pensar que Israel é a única causa de seus sofrimentos. Não é verdade, eis que alguns outros atores merecem créditos aqui. Os egípcios têm má consciência sobre os sofrimentos dos refugiados palestinos, e tentam tornar-se parte de uma solução, com proposta de doar terras para unirem-se a Gaza na formação do novo estado palestino (considero o que foi divulgado como verdade, mas se não for exatamente factual, pelo menos será uma grande ideia). A paz verdadeira exige de nós mais exercício em imaginação política e julgamentos justos. Agora, não tenho soluções de bolso para um problema envolvendo terras onde jamais habitarei. Tudo que posso dizer é que tenho um sonho.

Talvez valha a pena contar-lhes meu sonho, porque acredito que ao contrário do que Marx pregou, não é a Violência (Hamas) a parteira da História: a Esperança (Hatikvah) é que move a História. Desde que ouvi a oferta egípcia, tenho esse sonho de paz: fundar o estado palestino em Gaza com terras contíguas a Gaza cedidas pelo Egito, mantendo a Cisjordânia e Jerusalém numa espécie moderna de Pax Romana. Walzer explica o significado da expressão, dizendo que esse é um tipo de paz:

“centralizado pela hegemonia de um único grande poder sobre os demais poderes menores da sociedade internacional. Essa hegemonia sustenta a paz mundial, ainda que rebeliões ocorram de modo intermitente, e faz isso enquanto permite algum nível de independência cultural – talvez numa forma parecida com o sistema otomano do millet – sob o qual diferentes grupos religiosos tiveram sua autonomia legal parcialmente assegurada. A autonomia não é segura, porque o centro é sempre capaz de a cancelar, nem irá necessariamente assumir um formato desejado por algum grupo em particular, porque ela não é negociada entre iguais, mas outorgada pelo poderoso para os fracos. Não obstante isso tudo, um arranjo desse tipo representa o regime mais estável de tolerância já conhecido na história mundial.” (Walzer, 2004, p. 177).

Não há nada realmente novo nisso. As primeiras comissões que planejaram a partilha da Palestina já pensavam em algo parecido com manter Jerusalém como uma espécie de “corpus separatum” sob mandato britânico (Armstrong, 1996, p. 439). Então, alguém dirá que tenho um sonho imperialista? Eu nego: apenas desenvolvo a imaginação política para um problema que nas últimas décadas não conheceu maiores progressos. E confio em Israel para manter esse tipo regional de Pax Romana porque nem nos períodos mais dramáticos de sua existência o mundo viu Israel tornar-se um regime despótico de qualquer tipo. Israel mantém-se fiel à democracia e ao liberalismo. E eu endosso democracias liberais mais que outros arranjos políticos, porque elas são capazes de assegurar alguma paz. Como um exercício preliminar para a paz possível, eu diria que os palestinos devem começar a chamar Israel por seu nome, e não por Entidade ou Inimigo Sionista, e Israel deve manter sob estrito e rigoroso controle seus chatos fanáticos que ficam o tempo todo incomodando com seus mapas do Grande Israel e seus cartoons de Pallywood.

Mas a grande, a melhor contribuição que o mundo pode dar à paz deles lá no Oriente Médio seria parar de apoiar o terrorismo. Se não por outras razões, em benefício dos palestinos cujas vidas e perspectivas foram instrumentalizadas por décadas de proselitismo, e agora pelo Hamas, uma organização terrorista que roubou deles muito de suas perspectivas de bem-estar no futuro próximo, e agora, segundo se reporta, também os fundos para a reconstrução de Gaza. Permitam-me um exercício com a hashtag do dia: será que o Hamas “representa” os palestinos? Deixem-me começar pela limpeza do terreno dos preconceitos. Dediquei algum pensamento ao tema e concluí que não tenho um preconceito contra o Hamas. O que tenho do Hamas é um conceito. Mas ele nos obriga a uma parada emergencial para conversar um pouco sobre o terror. 

IX – Terrorismo

O mundo agasalha muitas fantasias perigosas a respeito do terrorismo. Ninguém em seu juízo mais ou menos são gosta de ver um chamado militante do ISIS degolar um prisioneiro. Mas nós desculpamos o terror. Uma tradição intelectual um dia emprestou charme a esse tipo de luta. Hoje, todas as desculpas parecem esgotadas, e o terrorismo é apoiado por pura inércia. Para quebrar esse estado de inércia, precisamos nos mover. O primeiro movimento é necessariamente intelectual. Precisamos discutir: que é o terror? Por que desculpamos o terror? E então avançar para a questão mais difícil: se decidirmos não absolver o terror, como lutar contra ele?

Começo com as desculpas, confiando, mais uma vez, nos recentes ensaios de Walzer (1980-2002). Como de hábito, ele agrupa as aparições do fenômeno ‘desculpas para o terror’ em tipos gerais: (1) o terror como último refúgio dos desesperados, quando tudo o mais falhou; (2) a única forma possível de luta dos fracos contra os poderosos (as figuras de David e Golias costumam aparecer nesse tipo); (3) que o terrorismo dá certo: nós não o aprovamos, mas esses caras com mãos sujas pelo menos estão fazendo algo pelo povo que não pode lutar por si mesmo; (4) e por fim o argumento cínico: todos os tipos de política são sujos, e os terroristas são apenas os caras autênticos, que fazem abertamente o que os outros fazem em segredo. Agora, uma coisa todas essas desculpas têm em comum: são todas fraudulentas, “elas dependem de afirmações sobre o mundo que são falsas, argumentos históricos para os quais não existem provas, e reivindicações morais que se revelam vazias ou desonestas” (Walzer, 2004, p. 59).

Permitam-me aplicar os tipos ao caso em questão. Considero Hamas uma organização terrorista e não a perdoo por isso. Afasto a desculpa do tipo 4 em princípio. Ela parece corresponder ao argumento realista, mas simplesmente ignora as realidades, pois existem políticas que não são fraudulentas. A desculpa 1 é flagrantemente falsa: o terrorismo não foi a chamada ultima ratio para o Hamas, mas a primeira, pois o Hamas escreveu em seus atos constitutivos o ideal de destruir Israel, renunciando a todo tipo de política. Por isso, apesar de eleito, não é um partido político. A desculpa 2 também é falsa: o terror não é o único modo possível de lutar contra o poderoso Israel. Prova disso é que seus companheiros na Cisjordânia têm procurado trilhar outros caminhos (em geral, o fato de Gandhi ter existido prova a fraude desse argumento). A desculpa número 3 não é verdadeira. Para que o terror foi eficiente no benefício da população de Gaza? Para nada, mas foi eficiente para tudo em relação ao objetivo final do Hamas: pois ele destrói Israel diária e permanentemente. Agora, se alguém me disser que exagero nas tintas porque desenvolvi um preconceito em favor de Israel, eu apenas os convido a pensar melhor sobre a essência do terror. Que é o terror?

O terror não significa a destruição física de um estado. O terror é a intimidação permanente desse estado por meios que são absolutamente injustos e que tornam difícil, senão impossível, para esse estado a tarefa de cumprir o dever que constitui sua essência: proteger a vida e a liberdade de seus cidadãos. O terrorista mata uns poucos representantes do inimigo para infligir terror sobre todos eles. “O terror é completamente irracional na perspectiva da vítima, que não pode impedir que ela e sua família sejam assassinados – nem mesmo por estrita colaboração com o grupo terrorista” (Heller, 2002a, p. 59). Não há o que se possa fazer sob terror, a não ser escutar a sirene e procurar abrigo, em tempo. Nem sempre esse é o caso.
E simplesmente não é verdade que os palestinos vivam sob terror infligido pelo estado de Israel. O que eles vivem podem ser chamado de opressão, e ela é justificada como autodeterminação limitada porque perspectivas sérias de paz durável ainda não se desenvolveram muito. Limitações para compra e venda de bens, importação e exportação, pobreza, até mesmo abusos pontuais em buscas policiais, nenhuma dessas opressões iguala-se ao terror. O terror inflige medo generalizado, mas tem algo mais. O terror inflige sobre a soma total dos cidadãos do estado que vive sob terror uma redução de autoestima: eles são oprimidos pelo olhar permanente do terror, gritando em sua face algo como: você não merece existir, você deve morrer, você e todos iguais a você, você não é nada! Ressalva feita de alguns fanáticos que sonham com a perigosa fantasia política do grande Israel, os palestinos não sofrem esse tipo permanente de medo e esse olhar permanente de ódio. É relevante dizer ao mundo que essa conduta fanática jamais foi política oficial de Israel (eu diria, nem mesmo nos tempos de Sharon, mas isso é discutível, o fato é que o homem que incentivou os colonos comandou a desocupação de Gaza em 2005). E mesmo nos tempos de Sharon, Israel não podia com justiça ser considerado um estado terrorista, pela simples razão de que o terrorismo governa no cenário doméstico pela opressão, e Israel não deixou de ser uma democracia liberal desde que existe. Mas isso nos conduz a algumas observações importantes de Walzer sobre o que ‘na realidade’ acontece quando o terror assume o poder. Ele diz que normalmente o terrorismo é a arma dos fracos, mas que essa fraqueza é sempre sua “inabilidade para mobilizar a nação” e isso faz do terrorismo a “única” opção deles, terroristas, mas não do povo. O terrorismo é:
“sempre uma política de elite, cujos membros são dedicados e fanáticos e mais aptos a suportar, ou assistir a que outros suportem, as devastações de uma campanha contraterrorista. Na verdade, terroristas recebem bem o contraterrorismo, porque ele torna mais plausíveis as desculpas dos terroristas” (Walzer, 2004, p. 61).
Não posso provar isso, mas é plausível que aquilo que Chomsky e outros, perversamente, chamam de “pretexto” de Israel para começar uma guerra injusta, ou seja, o sequestro e assassinato dos três adolescentes, se não foi planejado, pelo menos foi bem recebido pelo Hamas como oportunidade de produzir uma pilha de corpos para alimentar a insanidade do mundo em favor de desculpas para o governo opressivo que eles desenvolvem em Gaza em prejuízo dos palestinos. Mas antes de entrarmos nas causas, diretas ou remotas, dessa guerra, quero discutir um tema difícil: como lutar contra o terrorismo?
Há uma instituição imaginária, para empregar uma expressão de Castoriadis, centralizada no famoso discurso de 1955 de Moshe Dayan, que diz:
“Não podemos impedir todos os canos hidráulicos de serem destruídos, nem impedir todas as árvores de serem cortadas. Também não podemos prevenir o assassinato dos trabalhadores nos pomares nem de famílias em suas camas, mas podemos cobrar um preço muito alto para ser pago por nosso sangue, um preço muito alto para ser pago pela comunidade árabe, pelo exército árabe, pelo governo árabe”.
Eu leio na reportagem de Aaron Cohen, sobre sua experiência nas forças especiais de Israel, que esse discurso ainda é usado para levantar o moral das tropas (Cohen, 2008, p. 252). Mas acredito que esse discurso seja válido e legítimo como peça retórica para encorajar soldados (quase meninos, pouco mais que crianças em seus vinte e poucos anos) a enfrentar o campo de batalha, no qual a morte é sempre possível. Mas como estratégia essa imaginação merece elaboração. Primeiro: é verdade que não podemos vencer o terror. Nesse tipo de guerra, não haverá um dia para dizer ou cantar ‘Merry Christimas, war is over‘. Segundo: é verdade que cada ataque terrorista equivale a uma declaração de guerra contra o estado de cidadania da vítima. E isso é assim em razão da natureza específica do terror, que não é um assassinato normal: o ataque terrorista mata vítimas aleatoriamente, para ser bem sucedido no fim de manter todos sob a opressão do terror, de modo que todos vivam sob permanente terror. Pessoas que jamais correrão para um abrigo ao tocar de uma sirene esquecem o que é o terror, mas normalmente essas pessoas estão predispostas a desculpar fraudulentamente o terror. Terceiro: cada ataque terrorista reclama algum tipo de ação do estado, simplesmente porque esse é o dever do estado. Um estado que renunciar a isso, ou parar de tentar proteger a vida e a liberdade de seus cidadãos, não será um estado mal governado, ele simplesmente deixará de ser um estado.
Mas um melhor conhecimento das especificidades do terror nos permitiu descobrir que o terror não é jamais um movimento de massas, é sempre uma elite política que governa, no cenário doméstico, de modo tirânico. Walzer diz algo verdadeiro sobre a origem do terror. Mesmo que a gente não disponha de provas, há um instante de escolha em que algumas pessoas reúnem-se em torno à mesa, deliberam, contam os votos e decidem pelo terror. “Mais tarde, o rosário de desculpas obscurece essa discussão”. E frequentemente esse começo faz nascer o terror de uma divisão. “As primeiras vítimas do terror são seus camaradas”, os que votaram ‘não’ (Walzer, 2004, p. 58). Disso resulta que a “opressão não é tanto causa do terrorismo, como o terrorismo é um dos modos primordiais de opressão” (Walzer, 2004, p. 66). Disso decorre que pessoas que são também vítimas do terror não devem ser consideradas alvos legítimos de uma defesa, seja qual for, contra o terrorismo. Muito pelo contrário: por razões humanitárias, essas pessoas podem ser tidas com justa razão como alvos de libertação do terror.
Mas então, como lutar contra o terror? O discurso de Moshe Dayan aparentemente recomenda a retaliação numa certa proporção para fazer que os terroristas paguem preço alto para cada uma das vítimas. Mas esse não é o melhor imaginário para lutar contra o terror. Eu concordo com Walzer que usar um tipo de lex talionis é jogar o jogo terrorista, e isso é algo que simplesmente não podemos fazer. Isso implica que qualquer guerra contra o terrorismo não deve “olhar para o passado retributivamente, mas para o futuro preventivamente” (Walzer, 2004, p. 138).
Mas, então, de novo, como lutar contra o terror se não existe propriamente um front? Como lutar contra um inimigo que se parece com um civil? Como lutar contra um inimigo – se isso chega a ser pensável – que aparece diante de nossos soldados, algo mais crescidos que meninos, com armas prontas para matá-los, mas sob a proteção de uma criança como escudo humano? O que você faria, como chefe de um estado que vive sob o terror?
Existem complicações sérias numa guerra contra o terror, que devem ser levadas em devida conta por qualquer pessoa que pretenda julgar a conduta de um estado nessa guerra. Desde que as acusações levantadas contra Israel por uso desproporcional de força militar não apresentaram padrões de conduta adequados para uma guerra desse tipo, somos forçados a suprir esses padrões, porque o caso é difícil. Eu sigo novamente nas pegadas de Walzer (em citação longa, mas proveitosa):
“Na luta contra terroristas, não podemos ter por alvo civis (isso é o que eles fazem); no plano ideal, devemos nos aproximar suficientemente do inimigo, ou de seus apoiadores, de tal modo que estejamos certos não só de buscá-los, mas também de apanhá-los. Quando lutamos à distância, com aviões ou mísseis, precisamos ter pessoal lá, no front, para selecionar os alvos, ou precisamos contar com uma inteligência excelente; acima de tudo, não devemos superestimar a esperteza de nossas bombas. Excesso de tecnologia, suponho, não é um crime, mas pode conduzir a resultados muito ruins, de modo que é sempre bom deixar para a tecnologia certa margem de erro. E, por fim, desde que fazendo tudo isso, nós ainda estaremos impondo sérios riscos sobre a população civil, precisamos reduzir esses riscos tanto quanto possível – e para esse fim precisamos, nós mesmos, assumir alguns riscos. Essa é a coisa mais difícil que eu tenho a dizer, porque certamente não serei eu quem assumirá esses riscos. A regra da proporcionalidade é normalmente sugerida aqui: a morte de civis e as destruições, eufemisticamente chamadas de ‘danos colaterais’, não devem ser desproporcionais ao valor da vitória militar buscada. Mas desde que eu não tenho como medir quais são os valores relevantes, nem como especificar a proporcionalidade, e eu penso que ninguém realmente sabe, eu prefiro ter como foco a seriedade da intenção de evitar danos aos civis, e isso é possível de medir através da aceitação de riscos” (Walzer, 2004, p. 136-7).
Acredito que agora temos alguma orientação para começar a ver os fatos do caso.
X – Proporcionalidade
Melhor começar lendo os diferentes libelos acusatórios, numa gama de variações, desde a acusação por ofensa ao jus ad bellum, até três tipos de acusação por ofensa ao jus in bello. Nestes, o primeiro grupo aceita que Israel tenha justa causa para guerra, o segundo é sugestivamente silente sobre isso, e um terceiro (para vergonha nossa, podemos chamá-lo, o libelo brasileiro), iguala os combatentes na equação Hamas = Israel = terroristas.
Eu recebo o libelo de Chomsky como representativo do mais sério de todos, aquele que indicia Israel por uma operação militar ou ataque sem justa causa. Segundo Noam Chomsky, Israel aproveitou como pretexto para guerra o sequestro e assassinato de três adolescentes israelenses na Cisjordânia. Israel então partiu para violentas buscas, e o Hamas simplesmente teve que ‘responder’ atirando foguetes. Para Chomsky, Israel é parte culpada por ser “dissimulada, sadista, maligna e assassina” (in democracynow.org) e por começar uma guerra sem um “adminículo de prova” de que o Hamas estaria envolvido no assassinato dos três meninos. O argumento de Chomsky é esperto: ele quer que nossa atenção se concentre nos três meninos como casus belli, para aparentar que toda a guerra não foi outra coisa senão retaliação, e que nesse caso cada criança de Israel valeria o equivalente a 100 crianças palestinas. Eu só consigo repetir com Heller, sobre isso, que “o Diabo argumenta bem”. Na minha concepção, os fatos estão muito claros. O assassinato (que pelo menos Chomsky reconhece como brutal) dos três adolescentes pode ter sido a causa remota da guerra, mas a justa causa para a guerra foi o que todos nós vimos na TV, e não exige maior prova: o Hamas construiu por sete anos, ao invés de bem-estar para o povo de Gaza, uma rede de túneis em direção de Israel para lançar ataques terroristas. O Hamas tem mantido Israel sob terror permanente através do lançamento de foguetes letais (que não são brinquedos), para o território do estado de Israel. Hamas deveria ser desmilitarizado e esses túneis destruídos, e esse fim não podia ser alcançado senão por intervenção militar de guerra. Israel qualifica-se, assim, para o que Walzer recomendou como justa guerra contra o terror: não uma guerra de “olhar para o passado retributivamente, mas para o futuro preventivamente”. Quanto à declaração de terras na Cisjordânia como propriedade do estado de Israel: não é bom fazer uma guerra, nem mesmo em autodefesa. Guerras podem ser definidas, com Clausewitz, como continuação da política por outros meios, mas isso implica que elas são o último recurso. Seja ele justo ou injusto, o fato é que nesse caso existe um procedimento legal, com apelo à Suprema Corte, logo, Israel não precisa de uma guerra para esse fim. Mas ainda que não haja outra razão melhor para declarar propriedade do estado esses hectares de terra, eu admito que ela seria justa retaliação: se os palestinos querem insistir no terror, eles não são merecedores de autodeterminação, e devem sofrer redução de soberania ou de territórios. Sem paz, não há retorno de terras. E essa retaliação é algo mais civilizado que cobrar olho por olho. Como todos os outros direitos, a soberania e a autodeterminação não são dádivas da natureza ou direitos absolutos e incondicionais, mas direitos com respectivos deveres. Por isso eu rejeito todos os libelos por ofensa ao jus ad bellum.
Agora, antes de prosseguir no exame do jus in bello, quero dizer que não gosto da ideia de crianças morrendo em guerras, e acredito que ninguém em Israel gosta dessa ideia. As crianças são sempre inocentes. Mas em guerras, o oposto da inocência não é sempre a culpa. Eu não gosto de guerras, mas guerras são ocorrências entre estados. O estado de cidadania dessas crianças também conta na hora de culparmos alguém por suas mortes. O estado de cidadania das crianças de Israel é absolutamente inocente nessa guerra, mesmo que alguns oficiais, individualmente considerados, possam ser condicionalmente culpáveis. Mas a culpa do Hamas, sob todas as perspectivas, é absoluta. E ainda há muito boas razões para considerar que essa culpabilidade absoluta está relacionada, em termos de causalidade, com a morte das crianças palestinas.
Agora o mundo grita a palavra proporcionalidade. Mas eu só consigo dizer aquilo em que acredito. Eu penso que as Forças de Defesa de Israel aceitaram riscos sérios, e sofreram perdas humanas que a gente nunca gostaria que um estado inocente sofresse, com o intuito de minimizar até o limite do humanamente possível as perdas de vidas inocentes em Gaza, seguindo, se podemos dizer assim, a receita de Walzer citada acima. Em termos de autocontenção no emprego de violência, acredito que as Forças de Defesa de Israel têm muito que ensinar, e bem pouco que aprender com o mundo.
Eu rejeito, em princípio, todos os libelos que silenciam sobre a natureza específica do inimigo de Israel. Se as pessoas não querem reconhecer o Hamas como uma organização terrorista, então elas também não querem ver algo que não pode, com justiça, ser deixado de lado no julgamento do jus in bello: a dificuldade extraordinária proporcionada pelo campo de batalha.
Já quanto ao vergonhoso libelo brasileiro, ele não reclama só rejeição, mas compreensão. Marco Aurélio Garcia, assessor da presidência para assuntos internacionais, diz que nós do Brasil (ele fala por nós) “temos sido igualmente claros na condenação de toda ação terrorista, parta ela de grupos fundamentalistas ou de organizações estatais” (www.pt.org, “O que está em jogo na Faixa de Gaza”, 25/7/2014). Eis o silogismo. A primeira coisa a dizer é que o libelo acusatório é meio engraçado, porque em nenhum outro estado do globo, numa situação difícil sobre ir ou não à guerra,  se vê mais discussão pública que em Israel, e uma democracia liberal não é um estado terrorista por definição. Uma democracia liberal pode aterrorizar os outros, mas não há provas disso. Israel, ao contrário, é um estado que vive sob permanente terror há décadas.
O caso é que o governo brasileiro decidiu cair de amores pelo Hamas e desenvolveu o que Imre Kertész chamou de “ódio platônico aos judeus”, mas não porque esteja muito preocupado com aquelas centenas de crianças de Gaza. Nós demonizamos Israel como um Inimigo, e Israel como uma democracia liberal qualifica-se para ser esse Inimigo, especialmente agora que os E.U.A foram por nós abençoados por exportarem para nossa narrativa comunista exaurida sua política de identidades de raça e gênero, e nesse caso não se qualificam mais como Inimigo. A triste verdade é que nosso governo instrumentaliza as vidas e a liberdade dos palestinos para consumo doméstico. Nosso Bolivarianismo é apenas um upgrade do antigo Nasserismo. No front ideológico dessa guerra mundial, nosso governo declarou guerra contra Israel à causa de proselitismo, uma das grandes causas de guerra injusta. Por isso, nós absolvemos o Hamas, igualando Hamas e Israel. É simples. É fácil. Nosso governo aparentemente não paga nada por isso. Aqueles que pagam por isso não são o nosso governo, que luta por sua sobrevivência política, por meios violentos e imorais. Deixem-me lembrar, mais uma vez, com Walzer: “o que está por trás de todas as desculpas, seja de oficiais ou de militantes, é a predileção por um tipo tirânico de política” (Walzer, 2004, p. 66). Nosso Bolivarianismo é uma dominação carismática que joga perversamente com nossos medos e preconceitos, canalizando-os para o ódio a um Inimigo, de tal modo que a gente não veja que essa dominação não é muito diferente daquela que é tradicional na política brasileira, a que chamamos ‘coronelismo’: um Pai ideológico toma conta das crianças, alimenta os condenados desta Terra, mas à custa do desmantelamento da sociedade civil (e poderíamos lembrar a sabedoria de Hegel, ao situar a ‘administração da justiça’ na sociedade civil e não no Estado).
Se for o caso de alguém admitir o libelo de ofensa ao jus in bello, nesse caso subsiste a obrigação moral de considerar, com seriedade, as alegações do acusado sobre circunstâncias de dificuldade extraordinária. Os soldados (quase-meninos) de Israel devem ter vistos coisas desumanas, para dizer o mínimo. A proporcionalidade, aqui, não se conta apenas pelos que morreram, mas pelos inúmeros outros que no lado do estado inocente dessa guerra tiveram suas vidas permanentemente traumatizadas pelo que eles devem ter passado em Gaza.
Agora, apenas por argumentar, supondo que Israel tenha ofendido o jus in bello. O uso excessivo da força certamente não foi a conduta generalizada das Forças de Defesa de Israel no campo de batalha. Casos pontuais de excesso são casos para julgamento militar em corte marcial, não são casos para ser julgados pela comunidade internacional. A analogia possível aqui se faz com o homicídio, a legítima defesa e o excesso de legítima defesa. Em nosso juízo normal, nós absolvemos o acusado de homicídio quando se prova que agiu em legítima defesa, e não o culpamos por homicídio quando se prova que apenas se excedeu na defesa. A diferença entre assassinato e excesso de defesa não é de intensidade, mas de natureza. Na guerra, somos necessariamente levados a ver esse possível excesso através das lentes do jus ad bellum. Concluo com as sábias observações de Agnes Heller sobre a relação entre os dois termos da tradição da guerra justa:
(1) Se a causa para a guerra é absolutamente injusta, essa causa não se torna justa se o agressor luta com boa conduta ou legalmente. Se o agressor lutar injustamente, isso opera como uma circunstância agravante, somada à ofensa inicial ao jus ad bellum;
(2) No entanto, se a causa inicial para a guerra é absolutamente justa, “ofensas ocasionais ao jus in bello não anulam essa justiça inicial” (Heller, 1987, p. 215). Os padrões do jus in bello devem aplicar-se a todas as partes, devem ser considerados válidos por fracos s fortes, por agressor e vítima, por justos e injustos, senão eles são anulados. “Mas nós simplesmente não conseguimos sugerir às partes que lutam uma guerra completamente justa que elas devem perder essa guerra caso não consigam vencê-la por conduta justa, porque ao fazer isso estaríamos tomando o partido do agressor. E nós devemos esperar que o agressor perca a guerra, independentemente dos meios pelos quais as partes se conduzem” (Heller, 1987, p. 215).
Então, se Israel tinha direito à guerra para desmilitarizar Gaza e destruir ou minimizar seu potencial de opressão sobre os cidadãos de Israel através de terror permanente, como era o caso, e se reconhecemos que o teatro de operações foi extremamente complicado, devido a circunstâncias pelas quais o Hamas apenas é responsável, como foi o caso, então o libelo brasileiro, como todos os demais, na melhor das hipóteses (descontando o antissemitismo de suas razões de fundo) é um preconceito clássico, ou seja, um juízo passado antes do tempo. O fato mesmo é que nenhum dos três tipos de libelo por meios desproporcionais adiantou, às alegações, qual seria o padrão para uma operação militar legal. E esse é um silêncio eloquente. Não há um caso aqui, ou melhor, todos eles nasceram encerrados. Por isso, se políticos querem negociar sobre um potencial libelo, não só eles não têm a melhor moralidade do seu lado, como podem portar em seus bolsos moeda falsa, sem valor.
XI – Conclusão
Eis meu julgamento, que pode estar certo ou errado, mas vem sustentado na linguagem da justiça e não em preconceitos. É só isso que podemos fazer. Nosso julgamento não consegue conter as guerras. Agnes Heller escreve que as teorias de guerras justas são muito modestas, e tudo “que elas podem fornecer são padrões para julgar a justiça e a injustiça na guerra. [Mas] o seu mérito inquestionável está em sua capacidade para oferecer apoio moral aos estados que lutam guerras justas, quaisquer que sejam os seus resultados” (Heller, 1987, p. 219). Estou de acordo e apresento meu julgamento nesse exato sentido. Guerras têm cavado feridas fundas nos dois lados.
Já estive no júri em casos de homicídio. Trabalhando pela promotoria nós apresentamos nosso caso na esperança de convencer o júri. Em geral, o fair-play favorece as vítimas, por isso nós jogamos o jogo da justiça com meios justos. Mas mesmo quando temos um bom caso, que não podemos perder, sabemos que o final é perder ou ganhar. Mas lá no plenário nós apresentamos nossas razões, seja qual for o resultado: gritamos, repetimos palavras que o júri não pode esquecer, convidamos o júri a ser sério, responsável, mas tudo isso significa apenas que naquele momento nós falamos as palavras daqueles para quem – nesse exato instante em que estamos no plenário – todo “o resto é silêncio”. Se a gente sai do júri vitorioso, sabemos que o lógos prestou seus serviços à justiça, para mudar em retribuição a vingança. Derrotados, saímos devastados, mas as palavras que gritamos lá ficam ecoando por um tempo. E essa batalha não é muito diferente de uma guerra justa: se por acaso perdermos a guerra, pelo menos teremos feito alguma coisa com essas palavras: oferecer apoio àqueles que agora se ocupam do mais difícil dos trabalhos humanos: o trabalho do luto.
***

Referências:

Armstrong, Karen 1996: Jerusalém: Uma cidade, três religiões. tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Cia das Letras; Austen, Jane 2007: The complete novels. Wordsworth Library Collection; Cohen, Aaron; Century, Douglas 2008. Irmandade de guerreiros. tradução de Icaro Bonamigo Gaspodini. São Paulo: Larousse; Fanon, Frantz 1963: The wretched of the earth. translated by Constance Farrington. New York: Grove Press; Hegel 1964: Hegel’s Political Writings, translated by T. M. Knox. Oxford: The Clarendon Press; Heller, Agnes 1987: Beyond justice. Oxford, Basil Blackwell; Heller, Agnes 2002: The time is out of joint: Shakespeare as philosopher of history. Lanham, Boulder, New York, Oxford: Rowman & Littlefield; Heller, Agnes 2002a: “911, or Modernity and Terror” in Constellations, vol. 9, nº 1. p. 53-65; Hourani, Albert 1991: Uma história dos povos árabes. tradução de Marcos Santarrita. São Paulo: Cia das Letras; Oren, Michael B. 2004: Seis dias de guerra: Junho de 1967 e a formação do moderno Oriente Médio. tradução de Pedro Jorgenstein Jr. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; Roudinesco, Élisabeth 2009: A vueltas con la cuestión judía. traducción de Antonio-Prometeo-Moya. Barcelona: Anagrama; Shakespeare, William 2007: Complete Works. edited by Jonathan Bate and Eric Rasmussen. Macmillan; Walzer, Michael 2004: Arguing about war. New Haven, London: Yale University Press; Whitman, James Q. 2008: The origins of reasonable doubt – Theological roots of the criminal trial. New Haven, London: Yale University Press.


Uma resposta para “Ensaios sobre o terror: O mundo fora de si (2014)

Deixe um comentário