Que MP é esse?

(mensagem aos novos colegas do MPF, em 2 de dezembro de 2021)

Escrevia-se a Constituição, enquanto jovens em Brasília, na banda Legião Urbana, lançavam o hit “Que país é esse?”

A pergunta era retórica: naqueles dias todos nós sabíamos perfeitamente que país seria esse. Era tempo de promessas, de esperanças, de união. Em cartoon da Laerte, registrado em livro comemorativo das constituições brasileiras, lia-se – “não há túnel no fim da luz”.1

Charge de LAERTE, reproduzida em Ribeiro, Maria Izabel Branco (org). As constituições brasileiras. São Paulo: FAAP, 2007, p. 291

Todo mundo era democrata, ninguém era fascista, racista ou misógino. Foi nesse ambiente que ingressei no MPF, em 1991.

Vale rememorar o discurso de saudação aos ingressos do X Concurso, pelo PGR Aristides, que, 30 anos depois ainda nos emociona – mesmo quando não temos mais tantas certezas sobre quem somos. Dizia o PGR, então (em resumo):

  • que ingressávamos numa casa com carências enormes – mas, o que é curioso, todas de ordem material: “Mostramos-lhes, principalmente, as nossas deficiências que são de toda ordem: carência de Procuradores, carência de auxiliares administrativos, carência de edifícios, carência, enfim, de recursos materiais.”
  • que era importante compreender que não é apenas o conhecimento que faz um Procurador da República, mas, sobretudo a independência funcional. A mensagem do PGR jamais questionou que esse princípio seria a “alma” do Ministério Público. Não se cogitava de unidade, a ordem unida de soldados batendo continência a seu sargento ressoava para nós como algo incompatível com a “alma” do Ministério Público. Tudo que o PGR aconselhava era que não se fizesse da independência funcional apanágio para que o indivíduo usasse a instituição para seu proveito pessoal, ainda que meramente emocional. A independência funcional brilhava tanto que o PGR dizia ser algo “evidente”:

é evidente, que a um Procurador da República não basta o domínio da ciência do Direito.

Outros atributos lhe são exigidos, como a independência funcional, que é um dos princípios institucionais, posto na Constituição do Brasil.

É preciso, contudo, não esquecer que a independência, a altivez e a determinação no agir não são atributos antagônicos à prudência, à humildade e à lhaneza de trato. Ser prudente sem ser omisso; ser humilde, sem ser vassalo; ser afável no trato, até na discordância, é preciso!

É preciso não esquecer que o Ministério Público é alicerce do regime democrático e dos direitos sociais e individuais indisponíveis, para não cairmos na atraente tentação de que é ele simples meio de sobrevivência pessoal ou familiar, ou instrumento de promoção individual, ensejando o aparecimento de nossa imagem nos meios de comunicação social.

É preciso não esquecer que o aspecto formal da autoridade de que todos nós estamos investidos não deve ser demonstrado através de atitudes pejorativamente denominadas de autoritárias.

*

Passados 25 anos, este curso de ingresso na carreira poderia ter tido como guia para conhecimento da casa um colega como Deltan Dalagnol, que registrou em sua memória da Operação Lava Jato:

Minha carreira como procurador da República tem um ponto em comum com a história do Brasil: ambas são histórias de fracassos na luta contra a corrupção. É claro que não era isso que eu tinha planejado para a minha vida profissional quando ingressei no Ministério Público. Meu sonho era contribuir para a justiça. Trazia comigo a regra de ouro de meu pai, de vencer pelo esforço e pela disciplina. Eu acreditava em melhorar a vida das pessoas, mas meu esforço não estava adiantando nada. Foi um choque de realidade. Tanto fazia eu dedicar mais ou menos horas ao trabalho, justamente nos casos mais relevantes o resultado era sempre o mesmo: nada.

Descobri que eu era apenas mais uma pequena peça de uma grande engrenagem. Independentemente de quão bem cada peça individual funcionasse, o modo como as muitas outras tinham sido organizadas e concatenadas fazia do sistema de Justiça uma grande máquina destinada a produzir, quase inevitavelmente, a impunidade dos colarinhos brancos.

O que fazer? Eu poderia me tornar um burocrata. Bater carimbos e receber meu salário no fim do mês. Desistir não era uma opção ruim. Nas circunstâncias que descrevi, eu poderia me justificar perante o tribunal da minha consciência. Trabalho infrutífero é mesmo inútil. Outra opção seria continuar insistindo. Quanto mais segui insistindo, mais me convenci de que a luta contra o crime de colarinho branco dentro do sistema não era suficiente. Precisávamos atacá-lo de fora para dentro.2

*

Registramos dois documentos que retratam dois momentos na vida da instituição. Seus autores são sinceros, suas memórias são autênticas. Mas aqui nos perguntamos, numa dúvida verdadeira e não apenas em pergunta retórica. Que MP é esse em que hoje ingressais? Em metáfora médica, parece que sofremos de transtorno bipolar, e pulamos da fase de euforia para a depressão. Ninguém mais consegue recebê-los dizendo que nossos problemas são apenas materiais, como “falta de edifícios”: hoje sobram edifícios. Nossos problemas são também espirituais, mais propriamente de identidade. Mais sábio do que recebê-los com os versos do portal do Inferno de Dante – Lasciate ogne speranza voi ch’entrate – será iniciarmos uma reflexão e um diálogo franco sobre nossa “crise” de identidade.

*

Mas então quem somos, afinal?

Goethe certa vez disse que depois dos 30 somos responsáveis por nossa face. Entre os extremos da euforia e da depressão, poderíamos começar nosso tratamento pelo reconhecimento da realidade: nós somos jovens. Jovens demais, e não tínhamos memória (tradição) democrática. O MP que (re)conhecemos hoje nasceu na Constituição de 1988. Aprendeu a andar por seus próprios pés muito depois. A lei da ação civil pública é de 1985. Em 1991, ninguém sabia o que fazer com ela: não existiam ações civis públicas. A lei de improbidade é mais nova, do período do breve governo Collor. Minha geração no MPF deu os primeiros passos, na época, para questionamento do confisco da poupança do Plano Collor. Nossa lei orgânica é de 1993. Até então vivíamos em regime de monarquia constitucional: corregedor não havia, o artigo 28 do CPP era letra morta, nenhum juiz remetia arquivamentos ao PGR – ou apenas raramente o fazia.

Como jovens que somos, é natural que tenhamos sofrido turbulências da adolescência. Éramos os novos “tenentes” – diziam críticos do MP, com alguma razão. Nessa crise de adolescência, a sagrada independência funcional foi sendo mais e mais desprezada. Conseguimos modificar o art. 28 do CPP para que todo arquivamento de persecução penal fosse resolvido pela instância superior do MP, situação felizmente resolvida por decisão provisória do Ministro Fux, correta, ainda que processualmente abusada. Porque o Judiciário reconhece melhor o princípio governativo do MP – a independência funcional – do que instâncias revisoras internas, por vezes mais sedentas de poder que de racionalidade.

Enquanto sopraram os bons ventos da libertação, tínhamos uma imagem de MP no modelo projetado pela Constituição. O PGR Aristides não perguntava que MP é esse em que ingressais. Dizia, então, que:

Sabemos o que ele é. Sabemos as suas finalidades e o que devemos fazer para atingi-las. Basta, para tanto, praticar a teoria constitucionalmente impressa.

Mas, tal prática exige uma postura de independência, de altivez e de determinação no agir, aliada à prudência, à humildade e à lhaneza de trato, sem que se possa ver em tal aliança qualquer paradoxo.

É hora de praticar o Ministério Público, em toda a sua extensão. E a prática há de ser sinônimo de vida.

Em nossa agitada adolescência, fomos descobrindo que não é fácil “praticar a teoria constitucionalmente impressa” e que disfunções na leitura e compreensão dessa teoria podem levar a criatura projetada pela Constituinte a crises e tendências autodestrutivas. A instituição não morre, por ser permanente, mas ela pode perder seu élan vital, seu espírito. A Constituição não tem culpa disso. Ela projetou uma instituição em dicção legal de rara perfeição. Ali estão o conceito, os princípios governativos e as funções que permitem pôr em movimento o conceito. No conceito, andou bem o constituinte em não falar nos hoje abusados “direitos humanos”. Confiou-nos a guarda do regime democrático. Mas a verdade do conceito não pode ser separada das funções que a lei previu. Ao promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei, estamos guardando o regime democrático.3 O que não se via, naquela infância, é que no arcabouço infraconstitucional não tínhamos material legal de tal qualidade. É suficiente dizer que tínhamos a absoluta irracionalidade da chamada prescrição retroativa (abolida em maio de 2010, antes da Lava Jato e das 10 Medidas). Ao deparar-se com a montanha de crimes financeiros e de corrupção descoberta pela Lava Jato, Deltan Dalagnol tem inteira razão em sua mirada depressiva:

Somos como engenheiros incumbidos de construir arranha-céus, mas o legislador nos oferece tábuas, martelos e pregos para o serviço. Não surpreende que a Lava Jato seja um ponto fora da curva. O construtor precisa de aço e concreto para edificar um arranha-céu, isso não é um favor que alguém lhe faz. É o mínimo necessário para que a obra possa ser realizada.4

A doutrina constitucional tende a limitar-se a descrever o projeto desenhado na Constituição. Aí tudo é perfeito e moderno. Poucos enxergam que as ferramentas de trabalho continuaram arcaicas. Mesmo quando o Congresso moderniza um pouco o instrumento de trabalho, certa tradição e inércia que integram o espírito da instituição fazem com que se tornem letra morta na lei. Refiro, por exemplo, a reparação do dano civil na ação penal, ausente em muitas denúncias, porque não se atualizaram os modelos.

Porém, se o diagnóstico de Deltan é realista e correto, o remédio proposto é uma terapêutica personalíssima dele. A carreira parlamentar já se anunciava em 2017, quando Deltan publicou sua memória da Lava Jato:

Desistir não era uma opção ruim. (…) Trabalho infrutífero é mesmo inútil. (…) Outra opção seria continuar insistindo. Quanto mais segui insistindo, mais me convenci de que a luta contra o crime de colarinho branco dentro do sistema não era suficiente. Precisávamos atacá-la de fora para dentro.5

Quem hoje ingressa e os que ficamos por aqui precisamos aprender a tirar o melhor das ferramentas de trabalho – ainda ou sempre imperfeitas – e combater o crime de dentro para fora.

Uma terapêutica inicial, indispensável, é o conhecimento adequado de nossos fracassos. Sem esse conhecimento seremos reféns de impressionismos invariavelmente permeados de preconceitos. Vou me concentrar no crime, terreno em que me movimento com um pouco mais de segurança. Tivemos preconceitos clássicos em nossa adolescência. Diziam-nos, vocês devem se ater a pegar tubarões. Esse preconceito é prejudicial ao MP porque consolida o imaginário do heroísmo, de alguns, e confere um deficit de autoestima a quase todos os outros. Se eu não pego um tubarão por mês, quem sou? Não sou nada. (No preconceito de Deltan, “um burocrata” que tudo que faz é “Bater carimbos e receber meu salário no fim do mês”6). O fantasma do tubarão pressupõe que essa figura seria o modelo a ser seguido por todos nós. Mas esse modelo não tem lastro de realidade. Seria como mandar alguém pescar tubarões num pedaço de mar onde não existem tubarões, só peixe miúdo. O próprio Deltan Dalagnol desde as primeiras palavras em sua memória da Lava Jato confirma isso. A Lava Jato “não existiria sem uma série de coincidências improváveis”.7 Outro lado da moeda, é que o mito do tubarão produz impunidade miúda, mas por atacado, por ampliação arbitrária do padrão de insignificância penal. O promotor de Justiça pode perdoar o passador de moeda falsa, afinal é uma cédula só e o prejuízo não é dele. Mas não o faz por delegação da sociedade. O pequeno comerciante não aceita entregar cem reais na mão de golpista.

Outro preconceito prejudicial à instituição envolve o arquivamento. Alguns dizem “você arquiva demais”, querendo insinuar que você não trabalha direito, ou arquiva por preguiça. Por vezes vemos esse preconceito nas decisões da 2ª CCR – sob o jargão do “arquivamento prematuro” – investigue mais, qualquer coisa!

Caminhamos desde a euforia até a depressão que rondaram nossa adolescência. Considerando o termo inicial da lei orgânica, de 1993, nos aproximamos dos 30 anos, prazo para alguém tomar vergonha na cara – traduzindo com alguma liberdade o dito de Goethe.8 Um alento é perceber que a instituição começa a assumir com seriedade a tarefa de contabilizar seus fracassos. O projeto de contabilidade de resultados, implementado pela Corregedoria, caminha nesse sentido. Collingwood sabiamente dizia, “a estatística é boa empregada, mas péssima patroa”.9 Mas ela só será nossa patroa se quisermos.

Sem conhecimento confiável dos fatos, somos reféns de preconceitos. Seremos conduzidos pela euforia de soluções mágicas, sem lastro de realidade. Uma dessas soluções é a da task force. Cria-se o grupo e o problema parece resolvido. O esforço interinstitucional para repressão ao trabalho escravo é um considerável avanço, e o grupo trabalha muito bem. Mas precisamos unir as duas pontas do trabalho, e descobrir por que o crime em questão é campeão de absolvições. Assim como o crime de dispensa ou inexigibilidade irregulares de licitação. Pode ser que a solução tenha que vir de fora, como prega Deltan, se a lei for de fato muito ruim. Mas precisamos considerar a hipótese de que não estejamos trabalhando tão bem. E fazer a nossa parte.

Dito isso, finalizo, repetindo saudação recebida do PGR Aristides em 1991.

É hora de praticar o Ministério Público, em toda a sua extensão. E a prática há de ser sinônimo de vida.

Se assim é, meus novos colegas, só posso felicitá-los, dizendo:

Vivamos o Ministério Público!

Muito obrigado!

Brasília, 22-fevereiro-1991

Marco Aydos

Brasília, 2 de dezembro de 2021

1Cf. Maria Izabel Branco Ribeiro (Org), As Constituições Brasileiras, São Paulo, FAAP, 2007, p. 291.

2Deltan Dalagnol, A Luta contra a Corrupção: A Lava Jato e o Futuro de um País marcado pela Impunidade, Rio de Janeiro, Primeira Pessoa, 2017, p. 31.

3O constituinte com certeza não delegou a um clube de funcionários (de feitio jacobino), sem delegação direta da fonte de onde emana todo o poder, para guardar a democracia que vive no seu imaginário, seja ela participativa, militante, dirigida, etc.

4Deltan Dalagnol, op. cit., p. 226-7.

5Ibid., p. 31.

6Ibid. p. 31.

7Ibid., p. 13.

8Agnes Heller, Die Welt der Vorurteile: Geschichte und Grundlagen für Menschliches und Unmenschliches, Wien/Hamburg, Konturen, 2014, p. 155: Goethe hat einmal gesagt, alle Menschen über 30 seien für ihr Gesicht verantworlich, und er hatte recht.

9R. G. Collingwood, The Idea of History, London/Oxford/New York, Oxford University Press, 1956, p. 228.


Yom HaShoá 2022

Museu da Segunda Guerra, Gdanski, Polônia

Se existem coincidências, uma delas me ocorreu ontem, 27 de abril de 2022, ao entregar na Justiça pedido de indeferimento de perícia médica para verificação de imputabilidade de antissemita grave. Senti falta de orientação médica sobre questões difíceis, como: o antissemita será um doente? Se for doente, é tratável? Tem cura?

Felizmente encontrei um livro extraordinário do psicanalista americano Theodore Isaac Rubin, sobre a psicogênese do antissemitismo. Aproveito para divulgar algumas conclusões interessantes de Rubin sobre tema tão difícil.

Antes de conhecer Rubin, eu tinha uma ideia geral do antissemitismo na proposta de Freud, em seu estudo sobre Moisés: o antissemita é um invejoso. Esse fenômeno central – a inveja – na psicogênese do antissemitismo desde logo me pareceu superior à repressão homossexual, sobrevalorada, entre outros, pelo psicanalista Ernst Simmel, cujo ensaio, porém, merece ser lido (cf. SIMMEL, Ernst (1946) Antissemitismo e psicopatologia de massas [Trad. Gabriel K. Saito]. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. 10, p. 5, 2020. Disponível em https://revistalacuna.com/2020/12/17/n-10-5/, Acesso em 26 abr. 2022.

Mas a ideia da inveja foi proposta por Freud num ensaio de interpretação histórica sobre a gênese do monoteísmo judaico. Não era intenção de Freud desvendar, de modo descritivo, o processo psíquico de formação da personalidade antissemita individual. A crítica de Imre Kertész, médium do espírito de Auschwitz, era justa: parece não existir ciência que descreva adequadamente o antissemitismo:

“Seja qual for a ciência que examina o antissemitismo – é evidente que penso em ciência de verdade, e não numa ciência fraudulenta feita de parafernália ideológica -, ela sempre chega ao mesmo resultado: vê-se impotente diante dele”.

Sobre a hipótese de Freud, Kertész pensa que ela seria quando muito “acompanhamento distante de harpa que dá colorido ao eco brutal do hino” (A língua exilada, Cia das Letras, 2004, p. 50).

O livro de Rubin preenche esse vazio na psicogênese do antissemitismo. (cf. Theodore Isaac Rubin, Anti-Semitism: A disease of the mind, s.l., Skyhorse, 2009). Para ele, também, a inveja é o sentimento primário.

Na base e desenvolvimento do antissemita encontramos:

  • FRUSTRAÇÃO (fragmentação do eu, sentimento de fracasso e impotência na concorrência)
  • INVEJA – “o segredo inconsciente do antissemita, mais fortemente ocultado dele mesmo e dos outros – é o desejo de ser Judeu” (tradução nossa, The desire to be a Jew – The anti-Semite’s most buried and unconscious secret – from himself and others – is the desire to be a Jew). Não podendo suportar o ódio de si mesmo, decorrente de sua frustração, e incapaz de reconhecer sua inveja, a mente do antissemita protege-se através de um
  • INTERVALO (GAP) que permite a continuidade do eu, cancelando o desprezo de si mesmo e a potencial consciência da inveja. Depois desse intervalo, o ódio concentra-se na figura do outro, causador imaginário desses sofrimentos, como
  • SÍMBOLO, seguido imediatamente do processo de
  • DESUMANIZAÇÃO do símbolo. Não se trata mais do sentimento relativamente normal de ódio a uma pessoa especificada, por razões concretas (verdadeiras ou falsas), mas de um ÓDIO canalizado para “todos eles”. Por isso o antissemita não confronta as mentiras de seus insultos com a realidade (não é mais governado pelo princípio de realidade, mas pelo princípio de prazer): quanto mais irreais e desprovidos de objetividade forem os insultos desumanizadores, melhor (o antissemita não é “desinformado” nem ignorante, em geral é bem informado e inteligente). O ódio aos judeus desumanizados fortalece o eu fragilizado, daí a frequência de imagens zoomórficas, ilustradas por Joel Kotek (“Major Anti-Semitic Motifs in Arab Cartoons”, Jerusalem Center for Public Affairs, 1 jun. 2004, Disponível em https://jcpa.org/article/major-anti-semitic-motifs-in-arab-cartoons/, Acesso em 25 fev. 2022). As ideias de “conspiração” dos judeus encobrem a consciência potencial da falsidade desse esquema de autoproteção. Nessa fase o antissemita torna-se perigoso. O processo funciona como

“uma bala que saiu do revólver e não é mais controlada pela arma, podendo ricochetear para todos os lados” (a bullet that has left the gun and, no longer controlled by the gun, can ricochet all over the place) p. 24

A realimentação do ódio precisa ser constante, porque esse ódio é uma defesa neurótica não satisfativa. O antissemita é invariavelmente paranóide, ele vive em constante terror: ele raciocina em termos de vingança contra os que são em sua crença culpados por todas as dificuldades enfrentadas (p. 78).

A erradicação do antissemitismo individual é extremamente difícil, e provavelmente possível apenas quando tratado muito cedo, antes que suas raízes tomem conta do indivíduo (p. 155).

Por ser o antissemitismo grave impermeável a tratamento, Rubin entrega casos de violência criminal à administração da justiça. Saber se ele [o antissemita] pode distinguir o certo e o errado [crime] para Rubin é um problema legal (Knowing right from wrong is a legal concern. In psychiatry compulsion is of much greater concern, p. 175).

Enfim, considerando a normalidade das experiências e sentimentos envolvidos na psicogênese do antissemitismo, poderíamos considerar – legalmente – o antissemita um sociopata compulsivo que pode ser perigoso. Não está no texto, senão por inferência, mas poderíamos concluir que Rubin considera a medicina forense incompetente para discutir a questão da imputabilidade do agente acometido de antissemitismo grave.

Ernst Simmel corrobora a possível terapia proposta por Rubin. O antissemita grave não carece de tratamento, que ele mesmo não deseja, mas precisa ser punido, para que a autoridade da justiça – a palavra da comunidade – possa operar como substituto do supereu subdesenvolvido do antissemita:

“Gostaria de concluir com uma sugestão muito prática para combater o antissemitismo dentro de nossas fronteiras nacionais, uma sugestão aparentemente banal, mas possível de ser deduzida diretamente de minhas premissas teóricas. Demonstrei que o principal incentivo para o fraco indivíduo infantil se esgueirar para a existência em massa é que, ao agir com o grupo, ele se torna poderoso, poderoso o suficiente para descarregar suas agressões reprimidas contra um grupo minoritário mais fraco. O indivíduo fraco e infantil tende a submergir em um grupo, principalmente porque “a impunidade lhe é garantida” quando ele libera suas agressões por meio do grupo. Uma maneira muito simples de privar a massa dessa atração é evitar a existência de um grupo judeu – ou qualquer grupo – como minoria. Isso implica que o governo empreste seu poder aos grupos minoritários em nossa nação, tornando-os tão poderosos quanto seus oponentes. Praticamente, o governo promulgaria legislação, punindo quaisquer manifestações diretas de ódio das minorias, como o antissemitismo. Quando a impunidade não é mais garantida ao indivíduo emocionalmente imaturo, ele se sentirá menos tentado a se tornar um “alma da multidão”, a fim de aliviar-se de sua agressão destrutiva“. (ref. acima, grifo nosso).

Concluímos, com Freud, Simmel e Rubin: o antissemitismo não é uma doença; a palavra doença aqui é apenas “simbólica”: o antissemita grave pode até padecer de transtorno paranoide de personalidade, mas não é por isso inimputável e nem mesmo semi-imputável. Deve ser reprimido pela justiça como agente plenamente responsável pela violência que prega.

Numa sociedade de múltiplas frustrações, sabemos como é pequeno o hiato entre a violência verbal e a violência física.


As Sinhás Pretas do baiano Risério

Eis-me na página 201 do livro do Antonio Risério, As Sinhás Pretas da Bahia: suas Escravas, suas Joias1, no clímax da história, onde conhecemos origem e vicissitudes da pulseira escrava de Florinda. Aqui chegando, decido escrever algo para ajudar a vender a preciosidade do amigo. Recusando o spoiler. viajo na pergunta: dizer o quê, além de convidar nossos leitores à mesma aventura?

Minha irrelevância me impulsiona: quase não posso fazer mal a meu amigo Risério, e ela me liberta pra vender o peixe dele do meu jeito.

Nunca me incomodou a síndrome de Eça, o tal pânico da página em branco. Não escrevendo por dever, contrato, e apenas eventualmente por encomenda com prazo, quando vejo a página em branco, experimento a história de Eça às avessas, que Cecília registrou em crônica imortal. Dizia ela, então, que havia começado uma crônica

com grandes ambições de escrever sobre o soneto. E não para espancá-lo como no Bei de Túnis. Para mostrar sua ressurreição, com formas preciosas, por estes caminhos da América. Lembrava-me de Sara Ibañez, essa pálida mulher, tão triste, com seus olhos esverdeados cheios de paisagens enigmáticas (…) [mas] eis que interfere Sor Juana Inés de la Cruz (…) E por aí começou minha perturbação.

Resolvi deixar o soneto para outro dia. Muito mais interessante, ou pelo menos oportuno – nesta decadência em que vão continentes e homens, nesta derrocada tremenda a que assistimos – seria acompanhar, pelo itinerário dos poetas, a sua visão desesperada do mundo, prova de que o mundo tem andado certo.

Na sequência, Cecília, viajando pelo México, diz: “desejei falar de suas ruas, de seus museus, de suas igrejas, de suas índias de voz tão leve ‘ahorita, ahorita, señora’, entre montões de laranjas e tabuleiros de tortillas (…) Mas voltei-me para o lado, e avistei Rainer Maria Rilke (…) diante das pálpebras sofredoras de Rilke, uma grande melancolia se apoderou de meu coração. Nunca se sabe nada!

E por isso a minha história de hoje é a do Bei de Túnis ao contrário. Tantas coisas se precipitam sobre mim que não havia jornal capaz de conter tantos assuntos. (…) Em todo caso, se não pude fazer nada do que queria, não maltratei ninguém. Moralidade: sempre se pode ser mais generoso quando se padece de excesso de assunto. É uma pequena felicidade, que não se deve desprezar. 2

*

Na minha história às avessas, não farei resenha de As Sinhás Pretas. Louvarei seu autor, seguindo o fluxo de ideias que a leitura me proporcionou. Palavra adequada nessa jornada é autenticidade, no modo usado por Simone de Beauvoir. Autenticidade que se ausenta na produção intelectual universitária e comercial, no Brasil e em todo lugar. Não há mais o problema colonial, o mundo está sincronizado.

Em nossa história às avessas, a memória nos reporta aos nossos Coxinhas, onde examinamos a miséria espiritual da historiografia e da ciência política contemporâneas, para louvar, no final do primeiro volume, a autenticidade de José de Souza Martins, cuja síntese sobre o fenômeno lulista transcrevíamos, com o seguinte comentário:

Verdadeiro e bem escrito, como há tempo não se via na produção universitária brasileira. Aleluia: ainda há sociólogos no Brasil!3

Em apresentação de ensaios sobre o Brasil dos fundões (do sertão-desertão, como diria Gilberto Freyre), Souza Martins inscreve-se na tradição de bem-pensar, sem preconceitos, sobre os enigmas que nosso país oferece. E assim reconhece seus nobres antecedentes:

No livro, exponho o processo histórico da política brasileira, de modo a reconhecer, ressaltar e incorporar as populações retardatárias da história, que modificaram sua dinâmica e asseguraram o surgimento do lulismo. Num certo sentido retomo e revalorizo as linhas fecundas de interpretação do Brasil presente em obras clássicas de nossa literatura política: Coronelismo, Enxada e Voto, de Victor Nunes Leal (1948), Os Donos do Poder, de Raymundo Faoro (1958)… 4

Imagino Gilberto Freyre comentando As Sinhás Pretas em júri imaginário do The Voice Brasil intelectual: que belo romance vrai, diria ele, que harmonia entre a extensão, por processo vicário e empático, de autobiografia, cujos excessos são corrigidos pelo método científico objetivo, que serve de “constante testing às aventuras de indução e intuição, de revelação e de interpretação, do participante ou do intérprete”5.

Eis que minha louvação torna-se potencial fogo-amigo. Não há, em nossas humanidades, intelectual representativo que tenha sofrido mais preconceito, bullying e cancelamentos que Gilberto Freyre.

Intelectuais autênticos não cultivam preconceitos. Sartre e Simone de Beauvoir não compartilhavam – provavelmente sequer compreendiam esse preconceito. De Beauvoir relata seu encontro com Freyre, no Brasil:

Antes de voarmos para Recife, onde se realizava um congresso de críticos, fomos convidados para jantar em casa do M. Dias, um pintor que tivera a gentileza de se ocupar das nossas passagens e de nossos vistos. (…) Conversamos com Freyre que, em Casa-grande e senzala, descreveu os costumes no Nordeste brasileiro durante o período colonialista; ele me deu um livro ilustrado sobre Ouro Preto. 6

O preconceito é nativo. Mas de onde ele vem? Em que se sustenta? O que significa o preconceito e como ele pode ser vencido?

*

Aqui somos levados ao paradoxo – terreno propício para filosofar: existem preconceitos congelados em ideologias fortes que tomam conta das instituições parapolíticas, como são a educação e a justiça. O paradoxo é que nessas ideologias os preconceitos congelam-se para o objetivo final de erradicar os preconceitos. Onde isso tudo faz água?

Comecemos viagem. O bilhete é grátis, mas para qual destino? Quiçá chegarmos a descobrir que “nesta decadência em que vão continentes e homens, nesta derrocada tremenda a que assistimos” melhor será acompanhar o itinerário de pensadores autênticos, não por acaso marginais ao mainstream comercial e universitário, para possivelmente encontrar, contrariamente aos preconceitos, que apesar de tudo “o mundo tem andado certo”, ou pelo menos mais saudável do que as distopias projetadas pelos ideólogos do momento. Ganhamos alguma esperança quando podemos nos encontrar de modo autêntico com nossos problemas. Outros ganharão prestígio, em seus eternamente enjoados congressos, ou grana no Supermercado. Escrevem bastante, publicam e vendem, mas não encontramos nessas obras sequer um pobre tijolinho capaz de ajudar a construir a parede frágil da alta cultura, que nos proporciona abertura para transcendência: único gesto que permite vencer nossos preconceitos.

*

Preconceitos são generalizações. Generalizações são necessárias para sobrevivermos: acumulamos experiência, ninguém passa com a mesma ingenuidade numa rua escura, de noite, depois de ter sido assaltado. Mas se todo preconceito é uma generalização, nem toda generalização é um preconceito. Preconceito é uma generalização injusta, que pode resultar de certa tradição, ou de algum mecanismo defensivo, normal ou patológico. Importa no preconceito é que ele é uma generalização injusta, mas é humana e curável. Mas não é erradicável pela suposta iluminação da razão (da cultura) ou pela palmatória da justiça. Os dois métodos são antibióticos fraquinhos que fazem o bicho encistar, e voltar ainda mais forte quando romper tal defesa. Noutro contexto, sobre o antissemitismo, distinguimos o mero preconceito (humano demais) da discriminação racial, em metáfora médica, dividindo seus adeptos no pavilhão dos curáveis e dos incuráveis.7 O pavilhão dos incuráveis é formado por aqueles que congelaram seus preconceitos numa condição (héxis), disposição permanente da alma a praticar a injustiça inerente ao preconceito. Apenas a discriminação merece a sanção da lei penal, quando dirigida de modo direto ao alvo discriminado. O preconceito só merece sanção penal quando se torna concreto em vítima identificada (como no caso da injúria racial: até porque não pode existir direito à injúria). Confusão forjada pela ideologia racialista reifica as vítimas para buscar satisfação de prazeres do aplicador da sanção. O prazer de ser politicamente correto é uma espécie de assimilação voluntária a um grupo ideologicamente dominante, assimilação que tanto pode se dar por convicção, quanto por conveniência, ou por ausência de qualquer convicção, por covardia.

Voltemos ao preconceito intelectual. Somos humanos: todos temos e tivemos nossos preconceitos. A diferença do preconceito para a discriminação racial é que o portador de mero preconceito é curável. O preconceito não é precipuamente uma categoria epistemológica: não é estudando mais que se aprende a vencê-lo. O preconceito é uma categoria da vida cotidiana, que mobiliza considerável energia sentimental. Essa energia chega a congelar-se em sentimento positivo, quando passamos a ter orgulho de nosso preconceito. Por isso o preconceito não pode ser vencido por razões, apenas por um sentimento contrário e mais forte. Jane Austen, em Orgulho e Preconceito, mostra como o preconceito pode ser vencido por amor.

No plano intelectual, o preconceito pode ser vencido por amor à autenticidade na procura da verdade. A gente percebe que venceu um preconceito quando olha para trás e ri de nós, dizendo como fomos tolos. Vencer o preconceito é uma libertação. A memória de uma libertação é libertadora. O autor de As Sinhás Pretas é um liberto. Percebo sua memória adicionando à história minha experiência: eu também tive um dia preconceito … a Gilberto Freyre. Registro a libertação do Risério, em sua “carta ao pai”:

Devo demais a ele. Era um intelectual, membro do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia, amigo de Gilberto Freyre e Milton Santos. Escrevia sobre economia, política, coisas brasileiras. Quando comecei a escrever, ele parou com seus artigos e ensaios. Dizia uma coisa que hoje acho terrível, mas que na época, na minha adolescência, não me incomodava: “quando nasce uma árvore nova, a mais velha tem de dar lugar a ela”.

De sua amizade com Freyre (que eu, fedelho marxista, me recusei a conhecer pessoalmente), temos pelo menos dois registros. Freyre faz um agradecimento a ele no prefácio à segunda edição de “Sobrados e Mucambos”: “A outro amigo, o sr. Risério Leite, descendente de antiga família patriarcal do interior da Bahia, agradecemos a remessa de parte considerável do arquivo dos seus avós, senhores do sobrado do Brejo, com interessante correspondência ilustrativa do papel desempenhado pelo compadrio e pela política de partido na convivência patriarcal em nosso país”.

Quando fui preso pela ditadura militar, aos 16 anos de idade, numa visita matinal que me fez, na Base dos Fuzileiros Navais, me deu de presente “Grande Sertão: Veredas” e me disse: “Você pode estudar as correntes de pensamento que desejar. Mas, se quiser entender o Brasil, vai ter de ler e reler Gilberto, Euclydes e Rosa”.8

Riserio é de 1953; eu, de 1964. Mas no preconceito a Gilberto Freyre, somos contemporâneos. Recebi de herança a estante de livros de meu pai, com alguns volumes encadernados, pois, como dizem os civilistas, o acessório acompanha o principal. Sempre pensamos que aqueles livros eram decorações que preenchiam a estante. Tínhamos lá obra completa, encadernada em azul, de Humberto de Campos. No inventário, chegaram-me dois Gilbertos. Curiosamente, nenhum clássico: Interpretação do Brasil, edição de conferências nos Estados Unidos, em inglês, não traduzidas pelo mestre, e um volume de maturidade, muito ruim, Insurgências e Ressurgências. Acredito que ganhei por aproximar-me de Gilberto Freyre pelo seu pior. Não esperava muito. Quando ingressei na trilogia da sua história do patriarcalismo brasileiro, eu já me ensaiava na escritura de ensaios, sem muita segurança. Por isso, aproximei-me a Gilberto em primeiro lugar pelo modo de escrever, que me parecia ter uma fluência do pensar em inglês, depois traduzido com tempero de sabores da casa brasileira. Na mesma época, conheci os ensaios de “lugares de memória” coordenados na França por Pierre Nora, que ganharam o mundo. Percebi que Gilberto fazia exatamente isso, no Brasil, no começo do século XX. Devo ao ensaio de Gilberto, “Perfil de Euclides”, minha percepção de Os Sertões como revelação do Brasil: revelação mais que interpretação, ele enfatizava. Desde Euclides, foi natural chegar a Rosa. Então percebi (em parte em Nova Iorque e depois no Brasil), a verdade da mensagem do pai de Antonio Risério: “se quiser entender o Brasil, vai ter de ler e reler Gilberto, Euclydes e Rosa”.

Aqui registro, para a geração de meus filhos, as mensagens de Risério pai e do Risério filho: porque As Sinhás Pretas da Bahia nos revelam o Brasil, de modo parecido como fizeram Gilberto, Euclides e Rosa.

Aleluia, ainda existe autenticidade na cultura brasileira.

Por isso, louvo Antonio Risério, autor de As Sinhás Pretas da Bahia: Suas Escravas, Suas Joias, obra que – nesta decadência em que vão continentes e homens, nesta derrocada tremenda a que assistimos – permite que tenhamos esperança. O racialismo identitário explora e reifica pessoas, como todo ismo. Mas seus adeptos não são livres, são escravos. Escravizados em liberdade: eis a auto-infligida menoridade de que falou Immanuel Kant.

Mas já é tempo de interromper nossa história às avessas. Louvo Risério, o liberto. Entre libertos, ninguém precisa explorar, nem reificar o sofrimento dos outros, passados e presentes, para fazer sucesso. Teremos nosso destino, como foi o de Gilberto Freyre – desde sempre marginal, vítima de preconceito intelectual. Mas foi um pioneiro que conhecia seu destino – e o amava!



1Antonio Risério, As Sinhás Pretas da Bahia: Suas Escravas, suas Joias, Rio de Janeiro, Topbooks, 2021.

2Cecília Meireles, “Uma História às Avessas”, In Cecília Meireles, Melhores Crônicas. Sel. Leodegário A. de Azevedo Filho, São Paulo, Global, 2003, pp. 54-58.

3Marco Aydos, A Revolta dos Coxinhas, Vol. 1, Florianópolis, Sguerra Design, 2019, p. 167.

4 José de Souza Martins, A Política do Brasil Lúmpen e Místico, São Paulo, Contexto, 2011, p. 30.

5Gilberto Freyre, Sobrados e Mucambos, in Silviano Santiago (Coord), Intérpretes do Brasil, Vol. II, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2002, p. 680.

6 De Beauvoir, Simone, A Força das Coisas, Trad. Maria Helena Franco Martins, 5 ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2018, p. 495.

7Marco Aydos, “Ensaios sobre o Terror: O mundo fora de si”, Disponível em https://marcoaydos.wordpress.com/ensaios-sobre-o-terror-o-mundo-fora-de-si-2014/, Acesso em 23 nov. 2021.

8Antonio Risério, “Dia do meu pai”, 31 out. 2021, Disponível em https://www.facebook.com/antonio.riserio.7/posts/233284125461089, Acesso em 23 nov. 2021.


Agnes Heller as Professor – A Memoir

Each person is unique, but Professors of Philosophy are also typical. In this profile of Agnes Heller as Professor let me start with ideal types: the portraits of Kant, Lukács and Heidegger.

For Kant we have the testimony of his student Herder, for whom his professor was the typical figure of Enlightenment: a professor who hides from his students his own philosophy, who engages in Selbst Denken, and encourages his pupils to think with their own minds.

Kant as Professor

HERDER: I have enjoyed the good fortune to know a philosopher, who was my teacher. In the prime of life he had the happy cheerfulness of a youth, which, so I believe, accompanied him even in grey old age. His forehead, formed for thinking, was the seat of indestructible serenity and peace, the most thought-filled speech flowed from his lips, merriment and wit and humor were at his command, and his lecturing and discourse at its most entertaining. In precisely the spirit with which he examined Leibniz, Wolff, Baumgarten, and Hume, and pursued the natural laws of the physicists Kepler and Newton, he took up those works of Rousseau which were then appearing, Émile and Héloïse, just as he did every natural discovery known to him, evaluated them and always came back to unprejudiced knowledge of Nature and the moral worth of mankind. The history of nations and peoples, natural science, mathematics, and experience were the sources from which he enlivened his lecture and converse; nothing worth knowing was indifferent to him; no cabal, no sect, no prejudice, no ambition for fame had the least seductiveness for him in comparison with furthering and elucidating truth. He encouraged and engagingly fostered thinking for oneself; despotism was foreign to his mind. This man, whom I name with the utmost thankfulness and respect, was Immanuel Kant; his image stands before me to my delight1

Lukács as Professor – The Lógos

Agnes Heller was eighteen years-young when she first met Lukács at the room number 4 of the once called Pásmany-Péter University. Let us hear how she speaks of her professor.

AGNES HELLER: With a fast step he would come to class and open the manuscript of his extensive lecture. Then he would sit down and start speaking, always in a very low voice. One needed to concentrate to understand what he was saying. He would not change intonation, he would not have recourse to theatrical tricks. He would not stand up and walk from one side to the other of the room, he would not address the audience at all: no captatio benevolentiae. His lecture itself would address his audience, a thought without ornamentation, the pure Lógos. He would not move the auditor through his or her imagination, only through intelligence. But there was a thinker hiding behind the Lógos. Somehow the young students would catch and decipher something almost impossible to explain: the emanation of a significant personality. And this has become for some of us a destination. He was not a “distracted teacher” at all, but once he appeared at University in pajamas, and, returning home, he said to his surprised wife: “Gertrud, today I delivered my best lecture”.2

The Lógos is the radicalized enlightener. In polemics with the expression “mentor”, used, among others, by Martin Jay, Agnes Heller tells us that being a “mentor” for him, even if he wanted to, was something impossible: the sovietic system had some intuition and thought he was not to be trusted for such a mission. “There was a separate department called ‘Department of Marxism and Leninism’, which was controlled by the Party and mandated to teach Marx. But they never taught Marx, because they were teaching Lenin and Stalin instead”.3 Reading the word mentor between commas, Agnes Heller says:

AGNES HELLER: Having Lukács for a mentor was one of the main good fortunes (and luxuries) of my life. Although he was no longer the genius he once had been by the time I met him, the density of his personality and his passion for speculative thinking were still overwhelming. I looked up to him with respect and awe (one should not forget that in my perception he was a “very old” man, although he was just over sixty), and yet, at the same time, I talked to him as to my equal. He encouraged me to do just this, by accepting it as a ‘natural’ thing.4

Heidegger as ProfessorThe Magician

A completely opposite ideal type is the case of Martin Heidegger as professor, according to the profile drawn in a memoir by Karl Löwith.

KARL LÖWITH: We nicknamed Heidegger “the little magician from Messkirch”. He was strikingly small of stature; he came from the most humble background in the village of Messkirch, and completed his studies under severe privations […] He was a small man who knew how to perform conjuring tricks by making disappear what he just had presented to the listener. His lecturing consisted in constructing an edifice of ideas, which he himself then dismantled again so as to baffle fascinated listeners, only to leave them up in the air. This art of enchantment sometimes had the most disturbing effects in that it attracted more or less psychopathic personalities [….] Fascinated by the energetic earnestness of this small man, whom we had called the ‘saga of time’ ever since Sein und Zeit was published, I spent many years in the fruitless effort to establish a human relationship with a person whose life was defensively shut off from personal commitments, and who only in his encapsulated lecture chose to address “everyone and no one” by telling us with his concepts what he could not and would not say to any individual face to face.5

Agnes Heller as Professor

As I see Agnes Heller as Professor of Philosophy, she was the Aristotelian mesótes of the Kantian profile with some colors from the portraits of Lukács and Heidegger.

As a pure Kantian, mixed up with the Lógos, Professor Heller not only would not teach her own philosophy, she would not even mention that she had written books of philosophy. Except in events held by the Department of Philosophy, for the presentation of works in progress, the philosophy of Agnes Heller was something that the students would have to find out by themselves. I started classes on the semester of Fall, 1993, and would buy Agnes Heller’s A Philosophy of Morals only in March, 1994, and be allowed, upon request, to read her ethics of personality in manuscript. My experience of reading Heller’s trilogy of morals was a kind of liberation: I had come to New York with the immodest pretension of writing down a guideline for proper conduct. Now I was happy to find out that I did not need to try to write an ethics, something that I could not do, anyway, because everything was already done. This kind of liberation was beautifully described in Mihály Vajda’s memoir of Agnes Heller as Professor:

MIHÁLY VAJDA. Once upon a time I took a course in general ethics, and another in the ethics of existentialism, both conducted by Ágnes … I was very fond of these lectures; I was fascinated by her knowledge, her overview on connections; her highly commited manner.  … Heller’s lectures have a significant role in that the questions of philosophy or, more precisely, putting of questions in a philosophical way did not leave me alone anymore. But curiously enough one thing never came to my mind, namely, to deal with problems of ethics. If I ask myself the banal question, ‘Why?’, I will have many answers, but one of the main reasons is certainly the following: at that time I thought that all the problems belonging to this field had their own places in the well-considered scheme of Heller’s general ethics, so there was nothing left to think about them.6

Vajda said something true about an experience quite difficult to explain: how philosophy “did not leave me alone anymore“.

As for her style of lecturing, Agnes Heller was the ideal combination of the Lógos and the Magician. She would introduce us into philosophy by talking about it in such a way that philosophy would become real as an experience, not only some dead tradition written in books. Either walking from one side to the other of the room, or placed in the middle, she would address each one of her students in class: there was not with Professor Heller the practice of speaking to “everyone and no-one”. Professor Heller lectured with various intonations, from devotion and reverence up to wit and humor, in memorable anecdotes related to the matter under examination.

In a memoir we leap back in time and place, and so do I, back to 1993, by the end of a New York hot Summer, before classes would begin.

NY The New School circa 1994

After a walk through Barnes & Nobles I would come back to the hostel with the first book I bought in New York. On the front page I wrote: “NY, September 4, 1993 [First good thing in hand after a week in this N. Y. horrible game of house hunting] ($20)”. This jeweal was Agnes Heller’s recently released A Philosophy of History in Fragments. I did read the book in full before classes began. But I cannot say how much I understood, only that it was very little. But I already knew that this would be my favorite out of all books written by Agnes Heller. The last message of the book is about philosophy and immortality. In philosophy we do not immortalize ourselves. And yet philosophy is about immortality; but those who become immortal are the others. Philosophy is about

maintenance and preservation. It is done for the others’ sake, for they are the ones to be immortalized by us. Yet it is also done for our own sake, for it is like blood transfusion; we, free people of a free age, give meaning to our life by infusing the blood of the dead into our anaemic veins.7

Now that we cannot send professor Heller a message telling her about new books we have read or written, it is time to remember.

In this time our task is that of maintenance and preservation. Of blood transfusion, from the veins of the Absolute Spirit to our anaemic veins.

*

1Apud Ernst Cassirer, Kant’s Life and Thought, by James Haden, Yale University Press, 1981, p. 84.

2 Ágnes Heller, “El Fundador de Escuela”, Traducción de Miguel Vedda, Disponível em http://www.pagina12.com.ar.

3Katie Terezakis (Ed), Engaging Agnes Heller: A Critical Companion, Lanham, Lexington Books, 2009, p. 239.

4Agnes Heller, “A reply to my critics”, in John Burnheim (Ed), The Social Philosophy of Agnes Heller. Atlanta, Rodopi, 1994, p. 311.

5Karl Löwith, My Life in Germany Before and After 1933 – A Report. Trad. Elizabeth King, Urbana/Chicago, University of Illinois Press, 1994, p. 45-6.

6János Boros & Mihály Vajda (Ed), Ethics and Heritage: Essays on the Philosophy of Ágnes Heller. Pécs, Brambauer, 2007, p. 227.

7Agnes Heller, A Philosophy of History in Fragments, New York, Blackwell, 1993, p. 243.


Recordai

Simon Fujiwara (1982), «Hope House» (2018-Kunsthaus Bregenz), Instalação sobre réplica da casa de Anne Frank – https://www.estherschipper.com/de/exhibitions/496/

Não tomarás o Nome do Senhor teu Deus em vão – Êxodo 20:7

Ai, palavras, ai, palavras, / que estranha potência a vossa! (…) Sois de vento, ides no vento, / e quedais, com sorte nova! (…) A liberdade das almas, / ai! com letras se elabora…/ E dos venenos humanos / sois a mais fina retorta: / frágil, frágil como o vidro / e mais que o aço poderosa! Cecília Meireles, Romanceiro da Inconfidência, Romance LIII ou Das palavras aéreas

Imre Kertész, médium do espírito de Auschwitz, registrou que para além dos horrores, das vidas individuais, das mortes, do desejo ávido de justiça, uma angústia aterrorizante aderiu ao Holocausto: a angústia do esquecimento. Essa angústia foi perpassada também desde o princípio por um sentimento metafísico que caracteriza as religiões e o sentimento religioso.1

Em conferências sobre a culpabilidade alemã, logo após a libertação, o filósofo Karl Jaspers concluiu, de modo semelhante, que existe uma culpa metafísica envolvida no Holocausto, que vai além da política, da justiça e da moral. Essa culpabilidade fala como uma voz interior que nos acusa: eu sou culpado por ainda estar vivo.2 Diz ainda o filósofo, que o destino alemão poderia fornecer experiência a todos os outros. Mas apenas se puderem compreender essa experiência!3

Permitam-me, com a filósofa Agnes Heller, substituir o banalizado termo Holocausto, ou mesmo Shoá, por um lugar: Auschwitz.

Auschwitz é um lugar de memória, mas não dos judeus. Jerusalém é o lugar de memória dos judeus. “Auschwitz não é apenas um lugar, mas o contraponto de Jerusalém”. Religiosos de fé cristã descobriram, devido a Auschwitz, que nessa história representaram o papel de Caim. E que não se deve responder à pergunta de Deus, sobre onde está teu irmão, Abel, dizendo: Por acaso sou guardião de meu irmão? A toponímia Auschwitz designa um Abel coletivo, e simboliza a morte dos inocentes. Os religiosos recordarão que o inocente é o preferido de Deus. Alguns religiosos cristãos começaram a pensar que Jesus foi crucificado simbolicamente em Auschwitz, que O mataram de novo. E se realmente são cristãos, devem pedir perdão a suas vítimas, as que já não vivem e as que sobreviveram. Não importa se não foram autores diretos, nem se as vítimas não são as que morreram ou as sobreviventes. Porque aqui não se trata da memória individual, mas da memória coletiva, e do esquecimento coletivo.4

Com Kertész, Jaspers e Agnes Heller podemos situar Auschwitz num lugar religioso, e falar de uma culpa metafísica, além da experiência pessoal de ser culpável diretamente. Nós todos, que representamos o papel de Caim, somos culpáveis. Essa culpa metafísica é transmissível eternamente, como um pecado original. Mas existe um modo de alcançarmos nossa “purificação”. Voltando ao filósofo Karl Jaspers,

A questão decisiva é um fenômeno básico e eterno, que retorna hoje em forma nova: aquele que em derrota absoluta prefere viver, a morrer, pode viver apenas na autenticidade [in truthfulness], pois esta é a única dignidade que lhe resta.5

O modo possível de viver em autenticidade é não esquecer.

Não obstante, esquecemos, estamos esquecendo hoje. Mesmo progressistas, autoproclamados defensores dos direitos humanos, já estão esquecidos. A memória coletiva é mais frágil do que a memória individual, porque está sujeita a esquecimentos comissivos. Não se trata apenas de não lembrar, por esquecimento natural, ou derivado de traumas. O Caim coletivo, cujo lugar de memória leva o nome de Auschwitz, esquece Auschwitz de modo comissivo, produzido ideologicamente. Nós esquecemos Auschwitz ao profanarmos seu nome sagrado.

Progressistas, cientistas sociais, antropólogos, especialistas em relações internacionais, âncoras de telejornais, jornalistas, blogueiros, influenciadores, reais ou imaginários, e suas redes sociais, sem pudor sublimam o instinto de morte que produziu Auschwitz. Falam em nome da vida, em nome da verdade, em nome da razão, do progresso, da ilustração, da ética, da moralidade e do bem. Mas esquecem Auschwitz. Dois nomes sagrados estão associados a Auschwitz: genocídio, que não lhe é exclusivo, e negacionismo. Dois nomes sagrados são trivializados no proselitismo político de nosso tempo, de absoluta, ou pelo menos relativa, normalidade política: genocídio e negacionismo.

Quereis o impedimento do presidente? Lutai por ele. Ide às ruas, escrevei petições, dizei os fatos criminosos e os endereçai a quem de direito. Dois insultos, genocida e negacionista, não substituem a denúncia. São palavras que voam, mas cujo pensamento lhes é infiel. Palavras assim jamais chegam ao céu.

My words fly up, my thoughts remain below:

Words without thoughts never to heaven go.

William Shakespeare, The Tragedy of Hamlet, Prince of Denmark, Ato 3, Cena 3, linhas 100-101.

Uma causa boa não pode profanar o sagrado. Esteticamente, a causa torna-se obscena, pornográfica. Politicamente, imoral. Metafisicamente, ela põe à mostra, na superfície de suas palavras aéreas, a raiz de onde nasce: o desejo de morte. Não faz diferença que tal profanação seja de esquerda ou de direita. Behemot, deus representativo desse instinto, não é destro, nem sinistro: é imortal.

Recordai.

*

1Imre Kertész, A Língua Exilada, São Paulo, Companhia das Letras, 2004, p. 63.

2Karl Jaspers, The Question of German Guilt, Trad. E. B. Ashton, New York, Fordham University Press, 2000, p. 65.

3Ibid., p. 93. c

4Cf. cap. VII – Auschwitz y Jerusalén, in Agnes Heller, La Resurrección del Jesús Judío, Trad. Éva Cserháti, Barcelona, Herder, 2007, pp. 85-94.

5Karl Jaspers, The Question…, op. cit. p. 102.


Rostos e Nomes n’O Senhor das Moscas

O Senhor das Moscas não é uma distopia. É um drama político sobre a fragilidade da democracia liberal. Onde todos são absolutamente livres, ninguém está seguro de ter garantidas sua vida e propriedades. Apenas uma ordem civil pode assegurar civilidade, embora ela seja uma espécie de servidão: ela exige renúncia a tudo que se pode fazer, e obediência à lei, the rule of law.

No primeiro capítulo, O Som da Concha, assistimos à fundação de uma cidade nova, reconstruída a partir de vestígios de civilização. O design é o da reunião de todos num círculo, no meio do qual o orador é marcado pela posse de um objeto, como o cetro que Telêmaco, filho de Odisseu, carrega enquanto fala, na democracia liberal encenada na Odisseia. Mas a democracia incipiente fundada na ilha não é apenas grega, é também inglesa. Dois personagens principais estarão envolvidos nessa fundação: Ralph e Porquinho, que governam juntos, como Rei e Parlamento, versão idiossincrática da democracia insular, desenvolvida a partir da teoria dos dois Corpos do Rei.

A partir de fatores históricos dados a todas as nações europeias (…) foi, entretanto, apenas na Inglaterra que se desenvolveu uma teoria política ou legal consistente sobre os “dois Corpos do Rei”.

(…) a noção dos “dois Corpos do Rei” não pode ser separada dos primórdios do desenvolvimento e do ímpeto duradouro do Parlamento no pensamento e na prática constitucionais ingleses. Por representação, o Parlamento era o “corpo político” vivo do reino.1

Também na ilha de Golding, o Parlamento precede ao Reino. Porquinho descobre a função da concha, que funciona como o cetro de Telêmaco, para convocação da assembleia geral dos náufragos. Quando essa democracia fracassar, Porquinho carregará a concha em sua trajetória final: a concha explodirá. Ralph e Porquinho governam juntos, desde a fundação, numa democracia liberal em que veritas, non auctoritas, facit legem. Um dos momentos culminantes desse governo liberal é o chamado da concha para deliberação sobre um problema que assusta os pequenos: eles votarão se existem ou não existem monstros.

No segundo capítulo, Fogo na montanha, começamos a assistir à derrocada daquela incipiente organização civil, à destruição da democracia pelo abuso demagógico da democracia, até o surgimento de um tirano, líder de uma segunda revolução, que só terminaria quando engolisse todos os seus filhos, como em seu antecedente histórico, a ditadura jacobina. A liberdade absoluta tende ao terror, e à morte de todos. Mas a morte decorrente do absolutismo da liberdade não é uma morte essencial, como a do guerreiro na batalha, lutando pela pátria e por seus filhos: é uma morte sem sentido, não muito diferente do que cortar a cabeça de um repolho, segundo descrição de Hegel para a morte sob o terror jacobino.2

Do terceiro capítulo, até o final, assistimos às vicissitudes do governo do tirano, e à gradual destruição da polis incipiente, deixando rastro de terra arrasada, a começar pela negligência no cuidado com o bem comum, representada pelo desleixo na vigilância da fogueira na montanha, símbolo de resistência às dificuldades, por manter viva a esperança de resgate. Na sequência, acompanhamos a gradual revogação dos parcos vestígios de civilização herdados do antigo regime, até a perda definitiva dos interditos consagrados nos mandamentos “Não roubarás” e “Não matarás”. Rompido o interdito ao roubo, matar é passo curto, um simples aperto de válvulas da engrenagem, operação quase natural de manutenção do sistema.

À crise política desencadeada pelo fracasso da polis, soma-se uma crise de identidade: os meninos náufragos não sabem mais exatamente quem eles são.

Os antigos não tinham crises de identidade, eles sabiam quem eram. A identidade individual torna-se problemática na modernidade, e será objeto de reflexão na filosofia, primeiro por Locke, na sequência, por Leibniz. Para Locke, a identidade individual é decorrência da permanência do sujeito ao longo do tempo, através da memória. A essa noção, Leibniz opôs a seguinte objeção: se o indivíduo perder a memória, perderá por isso sua identidade? Leibniz responde que não, porque o indivíduo com amnésia será identificado pelos outros. Para Leibniz, a identidade do indivíduo é objetiva, e se escreve em seu rosto e em seu nome. Podem existir pessoas com o mesmo nome, mas elas não terão o mesmo rosto. Às duas teorias, a filósofa Agnes Heller objeta que uma não é totalmente subjetiva, assim como a outra não é completamente objetiva. A memória individual é também decorrência do processo de socialização e conterá elementos compartilhados com outros, como memória geracional. Por seu turno, a identidade objetiva não é apenas objetiva, pois como a filósofa costuma citar, Goethe certa vez disse que toda pessoa com mais de 30 anos é responsável por sua face, e ele tinha razão – Goethe hat einmal gesagt, alle Menschen über 30 seien für ihr Gesicht verantwortlich, und er hat recht.3

Conheceremos as identidades dos três protagonistas, inicialmente, por seus rostos e nomes, segundo a teoria de Leibniz, e só depois, na ordem em que essa identidade aparece no romance, pelos significados de sua identidade coletiva, sua memória.

1. O menino justo

Entre os três protagonistas, Ralph manterá a identidade de seu nome; Porquinho não terá nome; Jack mudará de nome, como num renascimento, experiência que evoca a conversão dos “santos”, do radicalismo político inglês que cortou a cabeça de um rei.

A face de Ralph é descrita por Golding com o humor de Cervantes, quando diz que não sabe se é bom, mas sabe dizer que não é mau. O perfil de seu rosto mostra “eyes that proclaimed no devil“, descrição que se perde ao ser vertida, na tradução brasileira, como “suavidade da boca e dos olhos [que] demonstrava brandura”.

O menino louro, que conhecemos em primeiro lugar pelo codinome de menino justo, the fair boy, tem lá seus percalços de injustiça. Mas se aprendemos com Aristóteles que um ato injusto não faz de alguém uma pessoa injusta, que apenas a disposição permanente para a injustiça torna alguém injusto, compreenderemos que a injustiça cometida por Ralph em relação a Porquinho não faz dele um menino injusto. Ele tem inclinação permanente para a justiça, é um fair boy. Mas é também um menino, e não perde a deixa de fazer bullying com Porquinho, algo que não está no enredo gratuitamente, porque envolve a recusa de Golding em conceder a Porquinho a graça de um nome.

Ralph e Porquinho são os primeiros sobreviventes a se encontrarem. A primeira pergunta é óbvia, qual é seu nome? O menino de cabelos louros (the fair boy) responde que se chama Ralph. O outro, o menino gordinho (the fat boy), espera a mesma pergunta em reciprocidade. Mas ela não vem (this proffer of acquaintance was not made). O tradutor brasileiro escreveu “sinal de intimidade”, ao contrário do sentido original. A reciprocidade da pergunta significa um sinal de reconhecimento mínimo, não de intimidade. Reconhecimento de que o outro teria o mesmo direito de ser conhecido por seu nome, elemento essencial de sua identidade. Na sequência, Porquinho disfarça o mal-estar e tenta novamente ser reconhecido, dizendo a Ralph: eu preferia não ter nenhum nome a ser chamado pelo nome que eu tinha antes do acidente. Ralph pergunta que nome era aquele, e agora sim, como sinal de intimidade, o menino gordo confidencia: era Piggy, Porquinho. Depois Ralph se aproveita disso e sacaneia o menino gordinho, apresentando-o a todos os novos integrantes da sociedade de sobreviventes: o nome dele é Piggy, Porquinho! Mas Ralph é só um menino, humano demais, a gente simpatiza com ele. Ele foi desleal, mas se desculpou com sinceridade: melhor ser Porquinho do que Gordinho, mas de qualquer modo me desculpe (Better Piggy than Fatty … Anyway, I’m sorry). Jack, por sua vez, sempre fingirá desculpar-se, de modo insincero, como quando pede desculpas por ter deixado o fogo apagar.

O rosto de Ralph é a face exterior do seu interior: o rosto de alguém que escolheu a si mesmo como um homem bom, decente, responsável. Ele vacila, às vezes, porque não é uma caricatura, é humano. Em certo momento, ele confidencia a Porquinho que devia desistir dessa democracia da lei da concha, e entregar de uma vez os pontos (e o poder) ao tirano. Porquinho profetiza a consequência disso: se você desistir, Jack virá atrás de mim, para me caçar como a um porco. Ralph então desiste de desistir. Ele é a encarnação da utopia, a promessa do melhor mundo moral possível. Podemos fechar aqui nosso primeiro argumento: O Senhor das Moscas não é uma distopia. É uma tragédia na qual o coro dos pivetes (littluns) é disputado por dois princípios: Ralph encarna a esperança, que não abre mão da salvação, encarna o princípio de vida; Jack encarna a resignação, ele não deseja ser resgatado, porque na ilha tem tudo que podia querer: potencialmente todo o poder para si. Se há uma necessidade numa tirania de feitio jacobino, guiada pelo instinto de morte, é que ela sempre será resgatada desde fora, porque seu primeiro motor é a morte inessencial. A salvação virá do mar. O oficial da Marinha que desembarca na ilha reencena simbolicamente o dia-D. Ralph é filho querido de Golding, que certa vez também desembarcou no continente, para salvar a Europa de uma tirania cujo princípio era a morte. Jack, o vencedor, é finalmente vencido, também pela resistência de um menino bom.

A pessoa decente é decente caso as condições políticas venham ou não a conduzir ao ressurgimento generalizado da moralidade em meio a uma realidade não utópica. Mas não será relevante sugerir que a pessoa decente, que permanece sendo decente, que assim encarna a promessa do melhor mundo moral possível, sejam quais forem as circunstâncias, é a encarnação da utopia absoluta? 4

O governo de Ralph é uma democracia liberal, não apenas pelo caráter sagrado da “concha”, mas também porque Ralph não concentra, antes divide, poderes. Quando Jack perde a primeira eleição, ele logo firma um compromisso e lhe oferece o comando do “coro”, que poderá funcionar como seu “exército”: os caçadores. Ralph se destaca na escala da grandeza e na escala da bondade; é um pouco Hamlet, um pouco Horácio. Será o protagonista de um drama político: a derrota da democracia diante do poder avassalador da “liberdade absoluta” e do “terror”, the rule of no law do mundo de Jack. Sua culpa trágica é o sentimento de sentir-se culpado, sem ser culpado, pela morte de Simon, primeiro, e de Porquinho, mais adiante.

Mas o final do romance é semelhante ao final feliz da tragédia de Ricardo III: pois a guerra civil terminou. Nas palavras de Richmond: Now civil wounds are stopped; peace lives again. That she may long live here, God say Amen.5

2. O estrangeiro absoluto

Porquinho é o protagonista de um drama particular dentro da tragédia política: um drama de assimilação fracassada. Porquinho é fundador, ele descobre os usos da concha para convocação da assembleia geral para discussão dos problemas de todos. O parlamento de Porquinho precede à realeza de Ralph, eleito em deliberação desse mesmo parlamento. A gente espera que o fundador da cidade seja heroico, um tipo de Teseu, que reúna força e coragem, mas encontramos no romance de Golding tudo ao contrário. Porque a democracia liberal é o mais frágil dos governos, Golding deu a Porquinho todas as vulnerabilidades possíveis.

A maior vulnerabilidade é não ter uma identidade. Porquinho não terá direito a um nome. Quem recusa a alguém identificar-se pelo nome, está a um passo de assassiná-lo. No momento mais dramático de seu romance Sorstalanság, Sem Destino, Kertész faz um soldado russo perguntar ao protagonista, na libertação do campo, seu nome, e ele responde, em alemão, como todos no campo haviam decorado, o número inscrito em seu braço: “Vier-und-sechzig, neun, ein-und-zwanzig”. No final, a caminho de casa, o protagonista é abordado em cada estação, se por acaso deparou-se com algum parente, com tal e tal nome, ao que ele respondia: num campo de concentração não se faz muito uso de nomes.6 Quem cobre seu rosto e recusa-se a chamar um Estado soberano por seu nome, designando-o Entidade, prepara-se para aterrorizar e assassinar.

Porquinho, o fundador do Parlamento, tem todas as fragilidades que alguém podia imaginar: não é só obeso, mas também asmático, o que lhe dificulta a fuga diante do inimigo. Não é só obeso e asmático, mas fortemente míope, e não enxerga nada sem as grossas lentes de seus óculos. Golding retrata Porquinho mais no corpo pesado, obeso, da cor de quem não toma sol (palely and fatly naked), e que não sabe nadar, porque não aprendeu devido à asma. É o único cujo cabelo não cresce, como se tivesse nascido calvo. Da cabeça de Porquinho sabemos que é uma cabeça gorda, cheia de pensamentos, porque ele ficava muito tempo na cama, doente, e pensava muito.

Por suas exageradas fragilidades, que beiram a caricatura, Porquinho retrata na história a fragilidade do único regime político que pode nos salvar diante dos poderes letais desenvolvidos por vínculos ancestrais. Não por inteligência, mas por intuição, Porquinho será o primeiro a ter consciência do perigo que corre. Desde a cena orgiástica do canto de morte ao porco do mato, ele sabe que, só por ser Porquinho, corre perigo de ser abatido pelos colegas. A democracia da lei da concha precisa sobreviver porque Porquinho precisa sobreviver. Golding deu-lhe todas as fragilidades, mas quando o fogo apaga, só ele possui o princípio da vida, que pode reacender a fogueira, produzir fumaça, e chamar resgate. Mas Porquinho sabe que todo mundo curtia pegar no pé dele. Porquinho é um estrangeiro absoluto, como Shylock e Othello. O estrangeiro absoluto é uma “função”, necessária, por isso tolerada, mas não é uma pessoa, ninguém o vê em sua humanidade. E ninguém o aceita. Na interpretação de Agnes Heller, o estrangeiro absoluto aparece em duas peças de Shakespeare, não por acaso ambas encenadas numa cidade cosmopolita, Veneza. Todos os outros personagens de Shakespeare são estrangeiros condicionais, como na tradição grega: personagens que estão por algum motivo fora de casa, mas que possuem uma casa para onde retornar. Othello e Shylock são estrangeiros absolutos porque são personagens desenraizados num mundo que os emprega e usa, mas não os aceita. E como Porquinho, os dois se iludem de que serão aceitos como iguais, preservando sua diferença: a cor da pele, do mouro, a religião, de Shylock. Seus dramas são dramas de assimilação fracassada. Também por isso, ambos são normalmente chamados pelo tipo que representam, mais do que por seus nomes, eles são o “mouro” e o “judeu”.7

A caça a Porquinho reencena a cerimônia orgiástica de celebração da morte da porca, com seu círculo de caçadores entoando canções de morte, um pogrom, uma cerimônia de incitação à morte do estrangeiro absoluto.

3. O tirano

A fundação da democracia liberal começa por uma espécie de recenseamento dos sobreviventes. Ralph propõe: é melhor que todos tenham um nome, eu sou Ralph. Porquinho diz que já tem quase todos os nomes, quando Jack reclama que aqueles eram nomes de crianças, que podiam ser trocados: “Kid’s names” … “Why should I be Jack? I’m Merrydew”. Nomes de crianças. Por que eu seria Jack? Serei Orvalho Contente.

Jack expressa em seu rosto sua identidade moral: “his face was crumpled and freckled, and ugly without silliness. Out of this face stared two light blue eyes, frustrated now, and turning, or ready to turn, to anger” (rosto enrugado e sardento, feio, mas sem sinal de estupidez. Nesse rosto despontavam dois olhos azul-claros, agora frustrados, mas prontos para armar-se de raiva).

Ao preparar-se para barbarizar, Jack planejará um rosto novo, na verdade uma máscara na qual se esconderá, liberado de toda vergonha e autoconsciência (Jack planned his new face … held up a mask … behind which Jack hid, liberated from shame and self-consciousness).

Jack não é um menino justo e destina a si mesmo o papel de um Ricardo III, que em sua apresentação nos diz: I, that am curtailed of this fair proportion (…) Deformed, unfinished, sent before my time/ Into this breathing world, scarce half made up (…) since I cannot prove a lover, / To entertain these fair well-spoken days, / I am determined to prove a villain (…) Plots have I laid, inductions generous,/ By drunken prophecies, libels and dreams, / To set my brother Clarence and the king/ In deadly hate the one against the other.8

Como Ricardo III, Jack é carismático. Porque “incitar o medo e abster-se de reconhecer qualquer limite formam uma espécie de carisma”9 Mas Jack é também um perfeito bonapartista: sua força é mais propaganda do que verdade. A cena principal em que ele mostra seu poder é uma fraude. O porco do mato que Jack mata não é um porco, é uma porca, e uma porca prenhe, com a barriga cheia de pequenos porquinhos. Pesada, a ponto de parir, (sunk in deep maternal bliss), ela não oferece resistência. O canto de morte entoado pela tribo de Jack deixa claro que o porco é uma porca (o possessivo está no feminino, sutileza possivelmente perdida em tradução: kill the pig, cut her throat, spill her blood).

4. You’re all British, aren’t you?

A identidade coletiva do grupo de náufragos é sugerida ao longo do romance. Ralph reporta-se à sua memória, à continuidade com a vida normal antes da queda, como confiança. O pai dele é oficial da Marinha Real, e lhe disse um dia que a rainha tem uma sala com mapas de todo o globo, e que não existe nenhuma ilha desconhecida. Eles certamente serão resgatados. Jack joga com a identidade coletiva de modo fraudulento, como falsa confiança que ele deseja ser-lhe depositada pelo grupo. Jack é o personagem insincero da patriotada, do “último refúgio dos canalhas”. Logo depois de dizer que a lei da concha não vale no topo da montanha, Jack contemporiza: mas eu concordo com Ralph, Precisamos ter regras e obedecer, porque não somos selvagens. Somos ingleses, e os ingleses são melhores em tudo!

A identidade coletiva retorna na cena final, em que o oficial da marinha que os resgata pergunta a Ralph sobre as baixas que tiveram. Ao ouvir de Ralph que dois meninos foram assassinados, o oficial comenta: I should have thought that a pack of British boys – you’re all British, aren’t you? – would have been able to put up a better show than that. (em tradução de Geraldo Galvão Ferraz: Eu imaginava que um grupo de meninos britânicos … vocês são britânicos, não é … seria capaz de apresentar um espetáculo melhor que esse … ” Ralph responde que no começo tudo ia bem, “antes que as coisas” … (silêncio). Isto é, “Estávamos reunidos então”, silêncio. Essa é também a primeira vez em que Ralph se permite chorar. O fim do romance revela o drama, mas não é uma cena de ação, tanto que foi cortada na versão de Harry Cook para o cinema, por mais excelente que tenha sido como filme de ação. Pelos preconceitos de hoje, Golding seria “cancelado” como eurocêntrico por ter escrito essa memorável cena final. Mas ela não tem nada de canalhice ou patriotada. É uma reflexão, mas não sobre a natureza humana. É uma reflexão sobre a fragilidade da civilização, diante do poder de Behemot.

As sucessivas vitórias de Behemot na história moderna são vicissitudes do instinto de morte que apela para a rebelião do Corpo contra a dita hipocrisia da alma (do espírito). Mas a democracia é algo espiritual, não é algo corpóreo. Onde consegue sobreviver, é Leviatã quem protege nosso corpo, porque cultua o narcisismo primário e o sentimento de respeito pelo outro, assim como por si mesmo (Selbstachtung). Dois exemplos ilustram a diferença de relacionamento com o corpo entre os dois titãs.

Behemot fomenta a guerra civil e a guerra civil tem duas filhas: a fraude e a violência. Behemot despreza o corpo do outro por fraude e por violência. No modo fraudulento, Behemot professa o lema dos estelionatários: se o mundo quer ser enganado, enganemo-lo. Mundus vult decipi. A fraude era prática cotidiana dos reis continentais, entre os quais os reis da casa dos Stuarts, em especial Charles II, engajado, como os reis continentais, na prática das curas pelo toque de suas mãos. Charles II, entre 1660 e 1664 tocou com sua mão real aproximadamente 23 mil pessoas.10Sigmund Freud percebeu a fraude, e observou em sua monografia Totem e Tabu, que essa prática ficou no passado, desde que o

cético Guilherme III, príncipe de Orange que se tornou rei da Inglaterra depois da expulsão dos Stuart, se recusou à magia; a única vez em que consentiu esse contato ele o fez com estas palavras: “Que Deus vos dê uma saúde melhor e mais entendimento”.11

Mas Behemot também despreza o corpo do outro por violência racionalizada pelos fins, como na prática da tortura continental. Juristas continentais apressam-se a desmentir o fato histórico de que a tortura jamais foi praticada na Inglaterra, como mais um mito inglês. O juiz Gabriel Tarde foi um deles, que escreveu que os ingleses se regozijam de nunca ter usado a tortura, desde Eduardo I, mas isso não seria verdade, porque também eles começaram a praticá-la com o nome de peine forte et dure. Ao que ele comenta: bem que eles poderiam ter importado coisa melhor do que a tortura continental, e nós poderíamos ter passado bem sem importar a porcaria do júri inglês.12

Mas o desmascaramento de Gabriel Tarde não é verdadeiro. A Inglaterra não usou tortura como método de prova pela confissão. A chamada pena forte et dure consistia em deixar o acusado na prisão à base de pão e água, e era aplicada ao acusado que recusasse a escolha entre “plead guilty” ou “not guilty”, caso em que seria levado ao júri. Até o século XVIII, o acusado tinha uma terceira opção, recusar-se à escolha, situação em que se entendia que se recusava a ser submetido ao júri de seus pares, recusava-se a reconhecer a lei da terra. Nesse caso, se o acusado morria na prisão ‘dura’, havia uma consequência patrimonial relevante. Se fosse julgado e condenado, seus bens seriam expropriados. Mas se morresse sem aceitar o júri, não seria condenado, e seus bens passariam a seus herdeiros.13 Em suma, a peine forte et dure não era refresco, mas não era tortura no sentido continental, inclusive porque ninguém encostava no corpo do acusado.

Chegamos então ao nosso segundo argumento. O Senhor das Moscas não é uma contraposição dogmática entre civilização e uma suposta barbárie primitiva, em estado de natureza. É melhor do que isso, porque nos dá a conhecer os dilemas de nossa fragilidade. O subterrâneo bárbaro eternamente presente na civilização também está em nós, pronto para nos destruir, ele não vem de fora. O princípio da barbárie, de Behemot, é o desejo de morte, e a morte da democracia liberal não vem do exterior, ela “está no meio de nós”. A narrativa de ficção de Golding apresenta, de modo simbólico, uma verdade atual para nós: os dilemas de nossa revolta dos coxinhas, nosso duelo contemporâneo entre dois titãs: um deus mortal, o Leviatã, e outro deus imortal, o coletivo Behemot. A tragédia de Ralph é revelada apenas no diálogo final. A gente tentou fundar uma cidade, a partir de uma fugaz lembrança do que seria uma democracia liberal, como a sociedade da concha. Com sabedoria, Golding a descreve como a mais frágil sociedade política possível, mas a única que seria capaz de assegurar a vida de todos. Os três protagonistas apontam a fragilidade da democracia liberal, porque é um regime que só conversa, não age e não decide em situações de crise (encenando os fundamentos dos escritos de intervenção de Carl Schmit, da década de 20 do século XX). Mas a crítica de Ralph e de Porquinho é diferente da crítica de Jack. Ralph ironiza a lei da concha, desde o começo, quando descreve as assembleias, que todos curtem, porque podem com toda solenidade dizer que deveriam construir um avião, ou um submarino, ou uma televisão, mas assim que a reunião termina, trabalham por cinco minutos e desaparecem ou saem para caçar. Mas Ralph ingenuamente chama uma nova assembleia assim que Jack rouba os óculos de Porquinho, para que todos votem se aquilo estava ou não direito. Jack despreza a lei da concha, porque não vale a pena perder tempo ouvindo os pequenos, Simon, Bill e Walter. Esses devem ficar calados e deixar as decisões para nós. Esse nós ainda inclui Ralph, porque Ralph é formalmente o chefe. Na sequência, Jack manobra para derrubar a democracia com as armas da democracia. Jack chama uma assembleia, e pede uma segunda votação, uma espécie de impeachment de Ralph. Com a palavra, Jack mente, dizendo que Ralph fez graça dos pequenos, que têm medo dos monstros, alega que Ralph fala do mesmo jeito que Porquinho, e por isso não é um bom chefe, ele não é um caçador, é um covarde, que ainda por cima dá ordens e espera que todos obedeçam, mas tudo com ele é só conversa (argumento clássico, de Carl Schmitt, em crítica à democracia liberal).

Jack perde a segunda votação, mas consagra com sua derrota que a lei da concha não vale mais para sua tribo. Porquinho reclama da lei da concha apenas quando the rule of no law já se estabeleceu, depois que a tribo de Jack rouba seus óculos. Porquinho lembra que votou em Ralph para chefe e ele precisa fazer algo, não ficar só de conversa. Porquinho então decide, vai pegar a concha e ir até a tribo de Jack e dizer a ele: você é mais forte, e também não tem asma, eu não lhe peço o favor de devolver meus óculos, você tem que devolver meus óculos, porque o que é direito é direito!

Na ficção é permitido encerrar o drama com intervenção externa, como um deus ex machina. O drama deixa no espectador um gosto amargo. Porque em nossa experiência de guerra civil não existe salvação desde fora. Precisamos forjar nossa própria salvação.

Algo que podemos fazer é começar a compreender por que as crianças menores se apaixonam pelo tirano. Sigmund indica um caminho: como todo totem, o Senhor das Moscas talvez não seja outra coisa senão um “substituto do pai”.14 O totem é poderoso e sedutor, porque funciona para alguns como poder redentor, que lhes dá vida nova. Encurta caminhos, facilita carreiras, elimina concorrências, favorece a autoestima de frustrados que invejam e se vitimizam. No começo o tirano cobra apoio, ou voto. Se lhe surgem dificuldades, pede mais do que lealdade: não só que seguidores denunciem amigos, pais, irmãos ou filhos, como traidores ou suspeitos, mas que também roubem, matem ou morram em martírio. Como numa organização criminosa, a filiação ao tirano revoga quaisquer outros vínculos sociais, e tem por afeto societário a culpabilidade compartilhada, que lava a culpa de cada um, transportando-a para a engrenagem.

Desde que a Revolução instaura no mundo algo completamente novo, também a tiranofilia pós-tradicional será novidade. Porque depois da fundação somos todos adultos e livres. Alguns de nós escolherão livremente sua servidão, a menoridade auto-infligida a que se referia Immanuel Kant. O enigma instrutivo d’O Senhor das Moscas é a pergunta: Como se pode perder a liberdade, em liberdade?

Aqui encerramos, ou interrompemos nosso almoço imaginário. Ainda com mais perguntas do que respostas.

E aqui ficamos

todos contritos,

a ouvir na névoa

o desconforme,

submerso curso

dessa torrente

do purgatório…

Quais os que tombam,

em crimes exaustos,

quais os que sobem,

purificados?

Cecília Meireles, Fala aos Inconfidentes Mortos, Romanceiro da Inconfidência, 1953.

1Ernst H. Kantorowicz, Os Dois Corpos do Rei: Um Estudo sobre Teologia Política Medieval, Trad. Cid Knipel Moreira, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pp. 268-269.

2G. W. F. Hegel, Phenomenology of Spirit, Trad. A. V. Miller, Oxford, Oxford University Press, 1977, p. 360.

3Agnes Heller, Die Welt der Vorurteile: Geschichte und Grundlagen für Menschliches und Unmenschliches, Wien/Hamburg, Konturen, 2014, p. 155.

4Agnes Heller, A Philosophy of Morals, Oxford, Basil Blackwell, 1990, p. 223.

5Cf. Agnes Heller, The Time is out of Joint: Shakespeare as Philosopher of History, Lanham, Rowman & Littlefield, 2002, p. 278.

6Imre Kertész, Fatelessness, Trad. Tim Wilkinson, New York, Vintage, 2004, pp. 201, 241.

7Cf. cap. 4, The Absolute Strangers, in Agnes Heller, The Time is out of Joint, op. cit. pp. 75-88.

8William Shakespeare, Complete Works, Ed. Jonathan Bate e Eric Rasmussen, Houndmills, MacMillan, 2007, p. 1305.

9Agnes Heller, The Time is out of Joint, op. cit., p. 256.

10Cf. Carl Schmitt, The Leviathan in the State theory of Thomas Hobbes: Meaning and Failure of a Political Symbol, Trad. George Schwabb e Herna Hilfstein, Chicago/London, The University of Chicago Press, 2008, p. 54.

11 Sigmund Freud, Totem e Tabu: Algumas Correspondências entre a Vida Psíquica dos Selvagens e a dos Neuróticos, Trad. Renato Zwick, Porto Alegre, L&PM, 2013, p. 87.

12 Gabriel Tarde, Penal Philosophy, Trad. Rapelje Howell, London, William Heinemann, 1912, p. 436.

13 Cf. John Langbein, Torture and the Law of Proof: Europe and England in the Ancien Régime, Chicago/London, The University of Chicago Press, 1977, pp. 74-75.

14Sigmund Freud, Totem e Tabu, op. cit., p. 215.


Contingência e Revolução n’O Senhor das Moscas

Imagem de capa de Michael Walzer, Exodus and Revolution

Bereshit bara Elohim

No começo… Tudo inicia no começo. As verdades da Bíblia situam-se no plano do Espírito Absoluto, não concorrem com a relatividade das ciências. Nenhuma narrativa revoga Gênesis e Êxodo, como manancial de significados para diferentes interpretações e evocações.

No começo foi a queda. Num acidente aéreo, um grupo de meninos foi jogado numa ilha deserta. No final, o protagonista Ralph, o menino justo, chora pela primeira vez. Golding parece ter em mente o livro do Gênesis na descrição da cena: “Ralph chorou pelo fim da inocência, pela escuridão do coração humano, e pela queda pelos ares do seu verdadeiro e sábio amigo, chamado Porquinho”.

A analogia com o Gênesis, possivelmente pensada pelo autor, porém, não se aplica ao romance. Nesse livro, a Bíblia descreve a queda do paraíso pelo pecado original, porque o homem provou do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, e desde então se fez responsável. Mas no novo coletivo de habitantes da ilha, temos dois grupos: os pivetes (littluns), e os maiores, na faixa aproximada dos doze anos, idade na qual já não são inocentes, pois já teve início a formação da personalidade moral. No desenvolvimento do enredo, os protagonistas, Ralph, Porquinho e Jack, conscientemente, escolhem a si mesmos com base no conhecimento de bem e mal que já tinham, ainda que talvez precário.

Mas a metáfora da queda é profícua como parábola para a compreensão da condição moderna. A palavra para traduzir essa condição é “contingência”.1 A contingência não é sinônimo do acidental ou acaso, embora tenha começo com o acidente: a queda do avião faz as vezes do acidente de nosso nascimento em certo tempo e lugar, e não em outro, submetido a uma dupla loteria: genética (pois, acidentalmente, trazemos certa bagagem hereditária, propensões, dons ou dificuldades) e social (acidentalmente, nascemos em berço de ouro ou numa manjedoura). A contingência envolve tomada de consciência. A consciência de nossa contingência é uma condição moderna porque ela aparece lentamente através da destruição da noção de télos, que governava o mundo até o começo da modernidade. A noção de contingência entre os antigos ocupava nichos marginais, como no cosmos de Epicuro e entre os gnósticos. No começo da modernidade, essa noção se desloca bruscamente para o centro. Só entre modernos faz sentido perguntar a uma criança: o que você quer ser quando crescer? Os antigos não perguntavam, porque sabiam a resposta desde a loteria inicial: se fossem bem nascidos, seriam nobres, e toda diferença ética seria uma questão de pouco mais, ou pouco menos, de medida. Ter noção da contingência envolve a perda do télos, que significava acima de tudo proteção. Essa perda desenvolve diferentes reações: alguns terão pânico, outros se regozijarão, pensando ser melhor ter mais liberdade do que menos. Alguns escolherão a si mesmos, modificando sua contingência em destino; alguns deixarão os outros escolherem por si, em atitude que os modernos associarão à inautenticidade.

O que se chama de acidente de nascimento não é contingência; a contingência é um fenômeno moderno, ao passo que o acidente de nascimento é uma experiência pré-moderna. A contingência é, melhor dizendo, a negação dialética do acidente de nascimento. (…) A contingência não anula o acidente de nascimento, mas o transcende, e ainda assim, a contingência não é o oposto do acidente de nascimento.2

Ter noção da contingência pode dar-se num choque. Ao comer o fruto da árvore do conhecimento, Adão e Eva descobriram sua nudez. Na literalidade, a nudez envolve vergonha: o sexo aparece e precisa ser coberto. Metaforicamente, a nudez envolve a noção de contingência. O que se torna visível é o nada que envolve homem e mulher, sua vulnerabilidade, sua nudez. O télos absoluto, que governava a vida interminável do primeiro homem e da primeira mulher, é perdido para sempre. A partir desse instante, é preciso escolher, e também responder por tal escolha. Ou seja, é preciso assumir responsabilidade.3

No romance de Golding, assistimos à queda e ao nascimento da responsabilidade. Com a queda, os meninos são jogados na liberdade, cuja experiência é ambígua. Quando percebem que nenhum adulto sobreviveu, festejam: é possível se divertir, sem obrigações. Mas é também choque: a segurança do mundo antes da queda desapareceu: agora eles não têm deveres de casa, mas também não têm “a proteção dos pais, da escola, da polícia e da lei”. Na metáfora da filósofa, os pré-modernos eram cartas aleatoriamente despachadas em alguma caixa postal, mas com um endereço de destino, ao passo que os modernos são cartas, também aleatoriamente despachadas em alguma caixa postal, mas com o endereço em branco. Esse vazio constitui, para bem e para mal, para gozo ou terror cósmico, a liberdade moderna. No romance de Golding, o momento de descoberta da contingência, como vulnerabilidade, é encenado pelo pivete Percival. Durante o recenseamento dos sobreviventes. Ralph pergunta-lhe o nome, e ele responde “Percival Wemys Madison, Paróquia de Harcourt, St. Anthony, Hants, telefone, telefone, tele- …” E desaba no choro, percebendo não apenas que esqueceu o telefone, mas que vivia em circunstâncias na quais seu endereço era inútil. Percival descobriu que era uma carta, jogada numa caixa postal aleatória, sem nenhum endereço escrito nela. O novo endereço dependerá de um deus ex machina, que venha do mar para sua salvação. Mas se não vier? Apenas um menino cogita essa hipótese de terror absoluto: Porquinho. Se não houver salvação, nós todos morreremos nesta ilha. Fica implícita, nessa perspectiva, a profecia de que, sendo todos meninos, poderiam ter vida breve ou longa, mas, ao fim, a vida da espécie, na ilha, também se extinguiria. A segunda profecia de Porquinho não trata da contingência cósmica, e seu terror, mas da sobrevivência política. O mais frágil dos habitantes sabe que, enquanto não vier salvação, a vida dele depende da contenção do tirano Jack, pela democracia liberal estabelecida no começo, como um novo Leviatã, criado a partir de resquícios de memória da tradição de origem. Todo o drama político do romance está centrado nessa necessidade, e no enfrentamento de renovadas dificuldades que lhe apresentam as vicissitudes do instinto de morte, raiz imortal de Behemot.

Ser jogado na liberdade, ter que assumir responsabilidade por seu destino nas novas circunstâncias, sem a opressão do antigo regime, mas sobretudo sem a proteção da tradição, é experiência que pode ser vertida no imaginário moderno da palavra Revolução, cuja narrativa mestra não se encontra no Gênesis, mas no livro do Êxodo.

Walzer enfatizou essa narrativa mestra como instituição imaginária das modernas revoluções. Segundo Walzer, desde o final do período medieval e primórdios da modernidade, esboçou-se um esquema típico para dar conta da mudança política, cuja história apresenta o seguinte formato:

opressão, liberação, contrato social, luta política, sociedade nova (e perigo de restauração). Nós chamamos esse processo de revolução, mas seu padrão original está na história de libertação de Israel da opressão egípcia, no livro do Êxodo.4

A parábola do Êxodo retrata o último paradoxo, encenado no enredo de Golding, ainda que a fundação da democracia, na ilha dos meninos náufragos, não seja semelhante à democracia popular de Israel, constituída pela aceitação da Lei ou constituição: berit, no hebraico; covenant, em inglês; diathéke, no grego, referido por Paulo na Carta aos Romanos, como elemento distintivo da nação judaica.5 Nessa primeira versão de democracia, não se exige identidade étnica, nacional, de gênero ou de idade, para aceitação da Lei: por isso a Lei é pactuada com todo o povo, e não com algum porta-voz. Essa democracia tem versão moderna na democracia americana, cujo fundamento é o culto à Constituição por indivíduos diferentes em tudo, menos no culto. A Constituição é o mínimo moral que os une, e ela permite que sejam diferentes, desde que unidos sobre esse pilar (pluribus unum), hoje fortemente ameaçado pela pauta identitária, uma vitória de Behemot sobre Leviatã, que desejaríamos fosse passageira.6 Diferentemente da primeira aliança, descrita no livro da Criação e que não admite ser rescindida, a aliança política narrada no Êxodo apresenta diferentes possibilidades, entre as quais a rescisão do acordo, razão pela qual a “lealdade” à Lei joga papel fundamental.7 A libertação da servidão egípcia envolve dificuldades, e pode ser vista como uma nova servidão, porque a obediência à Lei envolve renúncia de liberdades (é significativo que servir ao Faraó, como escravo, e servir a Deus, sejam ações descritas em hebraico pela mesma palavra).8 Uma dessas dificuldades é a saudade do Egito, porque lá, apesar da opressão, havia segurança, e o Faraó dava a seus escravos o que comer. Segundo interpretação de Walzer, Moisés resolveu essa dificuldade negociando com Deus um prazo mais longo de peregrinação pelo deserto, de quarenta anos, que faria com que os filhos da servidão egípcia morressem naturalmente, permitindo que a liberdade fosse uma condição natural de gerações que não nasceram escravas.9 Mas o estratagema de Moisés provou ser insuficiente, porque quem nasce livre pode retornar, em liberdade, à escravidão. Por isso, a identidade judaica é construída sobre o mandamento primordial, que fundamenta a própria Lei, mesmo que nela não esteja explícito: o dever de recordar. Recordai, no imperativo, é a palavra que envolve a identidade judaica, por isso título do ensaio de Yerushalmi, Zakhor. O verbo zakhar, em diferentes declinações, aparece na Bíblia por não menos do que 169 vezes, tendo por sujeito frequentemente Deus ou Israel. Deus comanda que se recorde, ação cujo oposto é o esquecimento.10 Essa recordação não é semelhante ao abusado dever de aprender com a história, porque ela acontece no presente absoluto, como condição sempre renovada. O verbo fundamental, não escrito na Lei, é renovado no cerimonial de cada Páscoa: recordai que fostes escravos no Egito. Tal recordação não diz respeito a um evento histórico, mas a uma condição, da qual decorrem deveres, entre os quais o de não maltratar o estrangeiro, porque também fostes estrangeiros no Egito.

O último paradoxo é retratado no Livro do Êxodo. Nas palavras da filósofa:

O povo de Israel escapou do Egito, onde era mantido escravo. Mas eles se libertaram da escravidão sem precisar lutar pela liberdade, eles a receberam como um presente. (…) Depois de serem liberados da escravidão, eles receberam também a oportunidade de tornarem-se livres. Apenas um povo livre merece uma lei fundamental, a única garantia de igualdade política, como condição para, e responsabilidade pela, constituição das liberdades, aí incluído o cuidado por sua segurança. Mas como eles usaram essa oportunidade de agir como um povo livre? Eles adoraram o bezerro de ouro. Essa história simbólica exemplar repetiu-se muitas vezes na história. Pela última vez, na história recente de alguns países da Europa oriental – como no meu país, Hungria, onde as pessoas receberam a liberdade como um presente de aniversário, e falharam em conservá-la. Entre outras razões, porque estavam acostumadas à segurança da escravidão e adoravam o bezerro de ouro.11

O Senhor das Moscas desponta nesse cenário como um retrato da condição moderna da contingência, de sermos jogados na liberdade como no nada, sem o télos protetor da tradição, mas também como um retrato do último paradoxo, porque uma vez em liberdade, haverá quem escolha retornar simbolicamente ao Egito: no romance de Golding, sob a tutela do menino Jack, o tirano, que promete ser capaz de caçar todos os porcos do mato da ilha, para dar aos pivetes o que comer, ao mesmo tempo em que alegadamente os protegerá de todos os males (e monstros, reais ou imaginários).

Mas a fundação da democracia na ilha de Golding é uma história diferente da fundação da democracia popular em Israel, e modernamente, na América. A fundação da democracia na ilha de Golding envolve personagens que não eram oprimidos no antigo regime, e traziam em sua memória vestígios de uma democracia liberal. Ninguém lhes oferece a Lei, uma constituição ou aliança, para ser honrada. O cenário é inglês, semelhante ao estado de natureza, decorrente de guerra civil, descrito por Thomas Hobbes. Intuitivamente, Ralph e Porquinho sabem que precisam constituir algo parecido com uma cidade, cercada por leis, the rule of law, como proteção contra a lei de Behemot – the rule of no law, a lei da guerra civil, encarnada em suas duas filhas: a fraude e a violência. Essa narrativa exemplar também se repete sob diferentes nomes. Entre nós, no período que buscamos compreender ao longo desta trilogia, o mundo de Jack foi o mundo de Petra, o mundo de Janete, o mundo do Mecanismo.

1 Cf. o capítulo Contingency, no magnum opus de Agnes Heller, A Philosophy of History in Fragments, Oxford [UK], Cambridge [USA], Blackwell, 1993, p. 1-35.

2Id., Ibid., p. 17.

3Id., Ibid., p. 4.

4 Michael Walzer, Exodus and Revolution, New York, Basic Books, 1985, p. 133.

5Cf. o magistral estudo do egiptólogo Jan Assmann, The Invention of Religion: Faith and Covenant in the Book of Exodus, Trad. Robert Savage, Princeton/Oxford, Princeton University Press, 2018, pp. 190, 198.

6 Cf. sobre a autodestruição da América pela política identitária, breve e esclarecedor ensaio de Arthur M. Schlesinger Jr., The Disuniting of America: Reflections on a Multicultural Society, Knowville, Whittle Books, 1991, 91pp.

7Jan Assmann, The Invention of Religion, op. cit., p. 190.

8Michael Walzer, Exodus and Revolution, op. cit., p. 73.

9Id., Ibid., p. 67.

10 Yosef Hayim Yerushalmi, Zakhor: Jewish History and Jewish Memory, Seattle/London, University of Washington Press, 1996

11 Ágnes Heller, “The Last Paradox: ‘We are born free but live in chains’”, Corriere della Sera, 17 ago. 2019, Disponível em https://www.corriere.it/cultura/19_agosto_17/agnes-heller-last-essay-european-forum-alpbach-security-freedom-a972be60-c0d7-11e9-a944-b7ca57037a99.shtml, Acesso em 22 out. 2019.


O Senhor das Moscas – Aproximação

Encerraremos nosso almoço imaginário com a verdade dos poetas. Quando as narrativas do golpe se parecem com ficções, melhor cenário para o desejado autoconhecimento pode vir de uma ficção legítima, como a de William Golding, cujo romance O Senhor das Moscas interpretamos em conversação com Thomas e Sigmund, ou Hobbes e Freud, como são mais conhecidos. 

O Senhor das Moscas não é apenas um grande romance, é também rico cenário para nossa especulação em torno da periculosidade das ideologias, em sociedades modernas, isto é, já de algum modo revolucionadas em suas tradições. O livro é interessante também porque não foi explorado em suas camadas mais profundas. Em sua carreira inicial, foi recebido apenas como romance de aventuras para adolescentes, mais uma história de náufragos numa ilha deserta. Em cartoon de 19 de março de 2018, na revista The New Yorker, Grant Snider fez graça de um personagem que, convidado para uma festa, aproveita a ocasião para examinar o anfitrião pelos livros que encontra na biblioteca. Num dos quadrinhos, o visitante encontra O Senhor das Moscas, e rotula seu anfitrião como aquele que não leu mais nada na vida desde o colegial (stuck in high school).

Um sopro de mudança aparece em 16 de março de 2017, quando Liesl Schillinger, em crônica no Los Angeles Times, descreveu brevemente seu inesperado reencontro com O Senhor das Moscas. A autora havia organizado uma biblioteca de livros contendo distopias, narrativas pessimistas, o contrário das utopias. Para compreender a atualidade política americana, ela passa em revista os volumes dessa estante, contendo desde Sinclair Lewis (It can’t happen here), até 1984, de George Orwell, sem encontrar nela muita inspiração. Então ela decide consultar a estante de seus “clássicos infantis”, guardados para a visita de sobrinhos e sobrinhas (“the preserve of visiting nephews and nieces”). Também para esta crítica americana, o livro de Golding era apenas uma história para adolescentes. Mas o título da crônica começa a reverter os sinais dessa tradição: “A distopia mais relevante em nosso tempo não é 1984 – é O Senhor das Moscas.”2

A intuição da crítica americana revaloriza o romance de Golding como leitura para adultos, mas é equivocada, porque O Senhor das Moscas não é uma distopia. Mas se não é uma distopia, o que será? 

Eis a indagação de nosso ensaio, que não pretende estragar o prazer da leitura, como spoiler, porque o romance de Golding, ainda que venha anunciado na versão cinematográfica como thriller, não é um thriller: é um drama cuja moralidade se revela à segunda leitura, depois de conhecido o enredo. Se o romance não lhe estiver disponível, boa aproximação ao enredo pode ser feita através da versão para o cinema de 1990, dirigida por Harry Cook.

Mas o filme é só uma aproximação, que revela apenas o enredo. Golding merece ser lido, preferencialmente no original. Ao contrário das filosofias e das ciências sociais, que se esforçam por reduzir a homonímia das palavras, a riqueza da arte está na ambiguidade, que se apresenta no romance desde a primeira frase, na apresentação do primeiro personagem.

The boy with fair hair…

Não há como evitar a tradução de fair hair por menino louro. Mas aqui se perde a ambiguidade do original, porque fair, em seu primeiro significado quer dizer razoável, cumpridor das leis, imparcial, justo. O dicionário Encarta registra apenas em terceiro lugar que fair também significa “light-coloured hair or skin“. O autor, de modo ambíguo, descreve Ralph como justo, imparcial, cumpridor das leis. Na sequência, o cabelo desaparece de sua descrição e o autor permite-se uma abreviação, para descrever o menino, ainda sem dizer-lhe o nome, como “the fair boy“. É o menino justo.

Mas que significa o título, O Senhor das Moscas?

O editor brasileiro tentou ajudar seu público, presumivelmente formado por adolescentes, mas acabou interpondo entre leitor e obra um prefácio desastrado, segundo o qual a obra trataria da natureza humana “dividida em três conceitos – a força, o carisma e a inteligência – representados respectivamente por três personagens – Jack, Ralph e Porquinho”. Para explicar o título, o autor do prefácio aventura-se na especulação de que ele seria “um quarto personagem, que seria a junção desses três aspectos anteriores, e que poderíamos chamar de ‘o Gênio'”. Resumindo o enredo, tudo nele seria “dramatização da natureza humana, [em que] esses personagens-conceito se alternam e medem suas forças”.  (Santiago Nazarian, “Apresentação: A força, a inteligência, e o carisma”, in William Golding, O Senhor das Moscas, Trad. Geraldo Galvão Ferraz, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2011, p. 9-10.

Pela dificuldade de interpretação do simbolismo desse livro, podemos perdoar o desastre do prefácio à edição brasileira. O próprio Golding pensava que a obra trataria de rastrear os defeitos da vida em sociedade nos defeitos da natureza humana e que a moral da história seria a conclusão de que o “formato de uma sociedade deve depender da natureza ética do indivíduo e não de qualquer sistema político, ainda que aparentemente lógico ou respeitável.”

Autores de grandes obras não são seus melhores intérpretes. Quando a obra salta para a graça, ela é densa em significados dos quais o autor não faz ideia. Entre autores representativos, é notável que Clifford Geertz tenha enveredado pela mesma trilha, vendo no romance de Golding apenas a superfície do romance de aventuras para adolescentes. Numa observação lateral em seu livro A Interpretação das Culturas, para sustentar sua tese de que a cultura não seria algo adicionado a um animal acabado, ou virtualmente acabado, mas um ingrediente essencial na produção desse mesmo animal, Geertz comenta o teorema de que “não existe uma natureza humana independente da cultura”, com a seguinte referência: “Men without culture would not be the clever savages of Golding’s Lord of the Flies thrown back upon the cruel wisdom of their animal instincts”1 (Homens desprovidos de cultura não seriam os personagens de Golding, em O Senhor das Moscas, selvagens inteligentes restituídos à sabedoria cruel de seus instintos animais). Talvez Geertz refira o livro de aventuras que conheceu na adolescência: se o lesse novamente, possivelmente encontraria, no cenário de Golding, apropriada metáfora para o mundo colonizado em vias de libertação, a cujos dilemas o antropólogo se dedicou. Questionando o truísmo de que a política de cada país reflete o design de sua cultura, Geertz exemplifica o caso da Indonésia, que desde 1945 teve uma revolução, uma democracia parlamentar, guerra civil, uma autocracia presidencialista, assassinatos em massa e um regime militar. Ao que ele pergunta: qual é o design da política da Indonésia? (Geertz, cap. 11, p. 1). Uma resposta possível envolve o último paradoxo, também retratado no enredo de Golding: em liberdade, pode-se escolher perder a liberdade. Nenhum destino é inexorável.  Tal como os meninos da ilha de Golding, o homem colonizado salta, de uma hora para outra, pelo impulso das revoluções, da condição de súdito, menor de idade, para a condição de cidadão, adulto e responsável pelos destinos da nova ordem política pós-revolucionária. Depois dos dias felizes da libertação, aparecem os dilemas da constituição das liberdades, entre os quais a recorrente saudade da segurança da escravidão egípcia. Porque lá pelo menos o Faraó nos dava o que comer.

Na sequência, seguiremos outra via de interpretação, que não verá no romance de Golding nem distopia nem tratado sobre a natureza humana. Seus três personagens principais não são caricaturas para as noções de força, carisma e inteligência, como pensou a edição brasileira. Se por força entendemos poder, cada um dos três personagens principais tem o seu, assim como cada um tem sua fragilidade. Jack, o poderoso, tem inveja de Ralph, porque Ralph foi eleito chefe. Ralph tem inveja de Jack, porque ele tem carisma. Porquinho tem inveja de Ralph, porque Ralph tem um corpo belo, e ele um amontoado de carnes brancas e flácidas. O mais frágil entre os três, Porquinho, tem a posse do instrumento que produz o indispensável fogo, suas grossas lentes de míope. Deter o princípio do fogo é um poder nada desprezível, tanto que na sequência Porquinho será roubado por Jack. Os três possuem inteligência. A diferença é o modo como cada um exerce sua inteligência, em relação a diferentes fins.

A edição de bolso Perigee foi mais generosa com autor e obra. Permite que a gente ingresse no mundo de Golding sem explicação prévia, e oferece modesto pós-escrito com nota autobiográfica do autor, e breves reflexões, que não pretendem esgotar o manancial de sentidos da obra, até porque “um estudo exaustivo de seu simbolismo ainda não foi empreendido” (E. L. Epstein, Notes on Lord of the flies, Perigee premium edition, 2006).

O editor americano pediu a Golding o que hoje chamamos de short bio: uma breve apresentação. Ele disse: nasci em Cornwall, em 1911, fui criado para ser cientista, mas depois de dois anos em Oxford mudei-me para o campo da literatura inglesa. Publiquei um volume de poesias, vagabundeei por uns quatro anos, até estourar a Segunda Guerra, quando me juntei à Marinha Real, onde fiz carreira. Entre outras campanhas, participei das operações do dia-D. Depois da guerra, dediquei-me a ensinar e escrever. Meus hobbies? Gosto de pensar, do grego clássico, de velejar e de arqueologia. Minhas influências literárias foram Eurípides e um anglo-saxão anônimo, autor de A Batalha de Maldon.    

No breve posfácio, Epstein interpreta o título do livro, que não significa o tal Gênio, proposto no prefácio brasileiro, mas tradução do hebraico Ba’alzevuv, vertido como Beelzebub no grego. No sentido religioso, seria um dos nomes do Diabo. Mas esse Diabo, como entidade religiosa, não faz presença na obra de Golding. “O Beelzebub de Golding é o equivalente moderno para a potência dirigente, anárquica e amoral que os freudianos chamam de Id”. Eis aqui um bom começo. Apenas lá pelo meio da narrativa seremos apresentados a quem seria esse senhor das moscas: a cabeça, espetada numa estaca, de um porco do mato caçado por Jack. Se fizermos uma pausa para leitura da monografia de Sigmund, Totem e Tabu, que traz como subtítulo “algumas correspondências entre a vida psíquica dos selvagens e a dos neuróticos”, perceberemos que o Senhor das Moscas é um totem. Quem o reconhece adquire identidade nova, de pertencimento ao grupo de Jack, que na sequência do romance formará uma facção, unida por vínculos ancestrais, em guerra civil contra a cidade, fundada na praia por Porquinho e governada, democraticamente, por eleição, por Ralph. Eis que o  romance de aventuras, em leitura para adultos, começa a revelar-se como conflito trágico entre dois titãs: Leviatã, o deus mortal do Mar, e Behemot, o deus imortal de Terra. 

Epstein encerra suas notas sobre O Senhor das Moscas sugerindo que o romance contém uma filosofia oculta. Mas arte e filosofia relacionam-se com a verdade de modos diferentes. A arte a expressa, por inspiração ou desígnio divino (theîa moîra, segundo Platão, no Íon). A filosofia pensa a verdade, e por isso a noção de genialidade lhe é estranha: não é um elogio chamar um filósofo de gênio. Mas a grande obra de arte permite ser pensada pela filosofia, sem que sua verdade seja maltratada pela crítica literária, que na expressão de Benjamin é sempre algo como a câmara mortuária da obra de arte. Podemos ler em Shakespeare, pelos olhos da filósofa Agnes Heller, uma filosofia da história, uma filosofia política e uma filosofia da personalidade, sem precisar conferir a Shakespeare “o duvidoso título honorífico de filósofo” (Agnes Heller, The Time is out of Joint, Shakespeare as Philosopher of History, p. 2. Também podemos, inspirados no ensaio magistral da filósofa, receber como um desafio o lamento de Epstein, de que Golding ainda não tenha recebido uma interpretação filosófica que lhe faça justiça. Esboçaremos no presente ensaio uma leitura do romance de Golding como filosofia da história, filosofia política e filosofia da personalidade, seguindo os passos de Agnes Heller, em seu ensaio sobre Shakespeare. Epstein tem razão em sugerir que o cenário e os personagens de Golding podem ser interpretados numa filosofia, como “figuras”: 

(…) os meninos da ilha são figuras numa parábola ou fábula que, como todas as grandes parábolas e fábulas, revela ao leitor uma conexão íntima, desconcertante, entre sua narrativa, aparentemente inocente e contada para passar o tempo, e a grandiosa, e bem pouco apreciada, profundidade do seu interior.

Os personagens de Golding são individualidades, com densidade existencial, virtudes e vícios. Mas também são representativos de diferentes formas ou configurações de consciência. Nossa aventura é descobrir, pela especulação, o que dizem essas formas, através das quais descobriremos também uma moralidade diferente daquela entrevista pelo autor.

Para leitura do romance como filosofia da história, elaboramos seu cruzamento com narrativas exemplares, na seguinte sequência: (i) o Antigo Testamento; (ii) a tradição grega de democracia e sua idiossincrasia inglesa, na doutrina dos dois corpos do rei; (iii) o processo pós-revolucionário de  autodestruição da democracia, na narrativa mestra do jacobinismo. Para leitura de sua filosofia política, as figuras do romance representarão (i) a fragilidade da democracia liberal, simbolizada na figura do Leviatã, deus mortal cujo elemento é o Mar, em duelo de titãs com (ii) o instinto de morte, irrupção dos poderes do subterrâneo, do coletivo imortal, na figura de Behemot, cujo elemento é a Terra.

Para leitura do romance como filosofia da personalidade, veremos os três protagonistas como indivíduos contingentes que escolhem, em liberdade, seus destinos. Temos no palco não um, mas três heróis de três diferentes tragédias: (i) Ralph, o menino justo, escolhe ser fiel à democracia liberal, e permanece fiel a seu destino até a última instância, sob o risco de sua própria vida; é um misto de herói romano e cavalheiro inglês, mas, sobretudo, personalidade que se sobressai na hierarquia da bondade, como o Horácio de Shakespeare. Ralph é protagonista de sua tragédia, a  de sentir-se culpado, mesmo sem ter culpa, pelo fracasso da democracia,  fracasso que termina por levar à morte os meninos Simon e Porquinho. (ii) Jack, o tirano, representa a escolha do mal pelo mal, como um Ricardo III. (iii) Porquinho representa o “estrangeiro absoluto”, ele é protagonista de um drama de assimilação fracassada, como Shylock e Othello, em Shakespeare. 


Edson Di Bernardi

Bambini, de Edson Di Bernardi

Paulo Leminsky dizia, quando eu fizer setenta anos, vai acabar essa minha adolescência …

Eis que Edson Di Bernardi completa 80, oitenta, anos de adolescência. A palavra é própria, porque o criador de coisas belas é um eterno adolescente, eternamente apaixonado por suas criações.

Edson Di Bernardi é nosso Turner, é nosso Rembrandt.

Edson está todo dia entre nós. A gente acorda e olha para a parede, e Edson Di Bernardi nos retorna seu olhar. A gente sai de nossa imanência pelo olhar de Edson: uma janela para o além, para a transcendência. A promessa de felicidade está ali nas telas de Edson Di Bernardi.

Uma vez, estudando filosofia, me incomodava a crítica dos radicais, que até me consideraram corrupto, quando ingenuamente revelei, na maior felicidade, que estava seguindo um seminário da filósofa Agnes Heller sobre o “conceito da beleza”. Disseram-me, então: como é possível que o contribuinte pague seus estudos para coisas tão inúteis? Eu não me via no papel cínico do aproveitador, eu achava que o investimento do contribuinte em minha formação merecia respeito, mas, naquele momento, eu simplesmente não sabia decidir se eu era, ou não, um folgado.

Felizmente, em alguma de suas aulas, não sei dizer se sobre Kant ou Marx, a filósofa me tranquilizou, definindo a filosofia em relação a esse dilema de ser útil ou inútil. Agnes Heller disse que a filosofia é “o jogo de palavras concebido para ser inútil, porque apenas o inútil consegue pôr em xeque todas as utilidades”. Desde então, eu ganhei a felicidade de me considerar “inútil”.

Penso nesse dilema quando observo a vida de Edson, um criador de coisas “inúteis”. A beleza é inútil. Mas as coisas concebidas para serem inúteis são as únicas coisas que conseguem desafiar, pôr em xeque, todas as utilidades. Eis que então a gente descobre que as coisas supostamente inúteis, consideradas enfeites para as paredes dos ditos burgueses, na verdade, são as únicas coisas úteis, porque fazem que a gente abra uma janela de nossa temporalidade para a transcendência.

E então a gente descobre que o adolescente Edson, com seus oitenta anos, através da verdade de seu trabalho, não é nenhum adolescente.

Edson Di Bernardi é imortal!


Os Novos Pobres

Pobre tem de ter um triste amor à honestidade. São árvores que pegam poeira.

João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas

 

 

Saturado das narrativas de filósofos, cientistas sociais, jornalistas e juristas de redes sociais, que dão pitaco sobre o que não sabem, decidi, na proximidade do encerramento de nossa jornada, dar apenas testemunho. Um pouco do que vi no regime do “lulismo”, que supostamente mais fez pelos pobres, nunca antes neste país.

A contrarrevolução do lulismo não envolve apenas imobilidade social dos pobres assistidos pelo Bolsa-Família. Ela também produziu mobilidade social, através da criação de duas classes novas: novos-ricos e novos-pobres.

Os novos-ricos do lulismo já se dão a conhecer. Esse tipo de mobilidade para o alto é uma restauração, no Brasil moderno, de uma prática do varguismo. Eles formam a classe do tubaronato, descrita por Raymundo Faoro como classe “lucrativa, especuladora nos seus tentáculos, apta menos a produzir do que a enriquecer, em consórcio indissolúvel ao estamento burocrático”, tubaronato que “floresce e engorda, ensejando a suspeita de que sua fortuna se deva ao favor, quando na realidade, se expande como autêntica expressão do sistema”.1

Os intelectuais do lulismo se jactam de serem os únicos a “ouvir a voz dos pobres”. E de fato empreendem viagem aos sertões para ouvir os redimidos da miséria pelo Bolsa-Família.2 Mas os novos-pobres do lulismo não são vistos, não são lembrados e não são ouvidos pelos intelectuais que legitimam o regime. No limite de nossa jornada, só podemos esboçar um quadro impressionista. Chamaremos os novos-pobres representativos de José, Maria e a vizinha de Maria. Os nomes são fictícios, as histórias são reais.

Pequeno empreendedor, José tinha uma indústria de fundo de quintal, de pré-moldados de concreto. Em 2009, empregava 29 pessoas, mantendo ou ajudando a manter 29 famílias. Em 2014, ao ser ouvido na polícia, tinha apenas 10 empregados. Em 2016, no interrogatório em juízo, não empregava mais ninguém.

Maria empreendeu uma pequena escola infantil de bairro, com clientes de classe média ou até mais pobres, que diante de um aperto ficaram inadimplentes. Sem receber, Maria atrasou uma taxa municipal de cerca de 5 mil reais.

A vizinha de Maria empreendeu uma pequena confecção, empregando outras vizinhas na costura. Numa crise de vendas, atrasou algum imposto.

Mas que aconteceu com José, com Maria e com a vizinha de Maria, no governo que supostamente mais fez pelos pobres, nunca antes na história deste país?

Aconteceu que o partido que, alegadamente, mais fez pelos pobres, os levou à falência, na ânsia de arrecadar mais. E ninguém percebeu a mágica, tão sofisticada que o Supremo Tribunal Federal, por “acachapante”3 maioria, menos um, a declarou legítima.

Parte do erro começou em 1996, no período de Fernando Henrique Cardoso. A pretexto de regulamentar a condição especial do microempresário, conquista social inscrita na Constituição de 1988, o legislador tratou o pequeno empresário, de menor capacidade contributiva, não como uma classe especial de contribuintes, mas como alguém que deveria aderir a um fictício programa de tributação simplificada mediante opção. O erro deve ter nascido da inércia, porque o jurista é um animal imitador: deve ter sido inspirado na fictícia opção pelo regime do FGTS, da qual não se conheceu jamais um único indivíduo que não fosse optante. Na origem, porém, o erro era inofensivo, porque a lei proibia tal opção ao microempresário que tivesse débitos inscritos em dívida ativa “da União ou do INSS cuja exigibilidade não esteja suspensa”, e essa pessoa não existia. Na vida real, a opção acontece no momento de nascimento da empresa, com uma declaração anexa ao contrato social. Emenda Constitucional nº 42, de 2003, manteve o erro original, ao determinar que o estatuto da microempresa deveria ser objeto de lei complementar, a qual poderia instituir “um regime único de arrecadação dos impostos e contribuições da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”, que “será opcional para o contribuinte”. Em 2004, surgiu por iniciativa parlamentar o primeiro projeto de lei complementar para o estatuto da microempresa.4 O governo ingressou na discussão com projeto próprio, posteriormente apensado ao original.5 Na longa deliberação do tema, após consultas a vozes da sociedade, da academia e do governo, que se descobre? Que o governo do partido dos trabalhadores tinha o Parlamento de joelhos a seus pés. Na finalização da redação, registram, com triste lamento, nossos parlamentares:

Queremos chamar especial atenção para o fato de que praticamente todas as modificações realizadas no Substitutivo que o tornaram menos atraente do que antes foram exigidas pelo Governo Federal, com o que concordamos unicamente com o intuito de viabilizar a aprovação de tão importante Projeto de Lei Complementar.6

Resultou da mágica que o estatuto que deveria criar condições de identidade da microempresa foi deturpado pelo governo como programa de cobrança de tributos no prazo legal, sob ameaça de perda daquela identidade, e imediata submissão à tributação exigível de megaempresas, como Odebrecht ou Ambev. Como se construiu a mágica?

Aproveitando a redação da lei de 1996 (sobre proibição de optar pelo Simples ao empresário com débitos inscritos em dívida ativa), o governo dos pobres criou uma hipótese de exclusão do regime por inadimplemento de qualquer tributo devido a qualquer dos entes federados. Agora não era apenas proibido ingressar no Simples por ter débito inscrito em dívida ativa (algo que na prática não existia): tornou-se proibido ficar no Simples por atraso, isto é, um dia após o vencimento, de qualquer imposto ou taxa, sem aquela ressalva da “inscrição em dívida ativa”, o fim do caminho na cobrança administrativa da dívida.

Maria, empreendedora daquela escola infantil de bairro, que no exercício de 2008 não conseguiu pagar em dia um título municipal de R$ 5.327,77, por mágica se tornou devedora de R$ 52.633,51. Sem condições de pagar esse tributo, em sua nova e fictícia condição de megaempresária, Maria talvez feche as portas. A trabalhadora que precisava da escola de Maria para seu filho, porque a rede pública de creches não é suficiente, talvez será mais uma nova pobre do novo regime.

Existem mágicas que tornam a administração fiscal regressiva, que nem os juristas nem os consensos de universitários e jornalistas conhecem. Duas dessas mágicas foram invenções da administração fiscal de Fernando Henrique Cardoso. A primeira mágica foi a inversão da administração fiscal, de atividade vinculada para discricionária, operada através de simples portaria de serviço, criada a pretexto de combater os falsos fiscais. A segunda foi a mágica de conceder a megaempresas e grandes devedores remissão de dívidas, disfarçada de parcelamento. Moratória infinita, porque não sujeita a prazo, mediante parcela a ser calculada pelo devedor com o percentual de alguns décimos de seu faturamento, que logo viralizou como prática de ingressar e permanecer no chamado Refis mediante prestação fixa de cem reais.

Com o lulismo, assim como também ocorreu no tópico da corrupção, a regressividade fiscal da tradição brasileira foi aufgehoben: o que havia de ruim foi mantido, e foi inventada uma nova técnica de cobrança de tributos de pobres. A lógica da ideia é jacobina: para ser do Simples tem que ser pontual; quem não tiver tal virtude, sairá do Simples e se tornará ficticiamente grande empresário. Para nós, do governo dos pobres, será bom contribuinte, e assim, arrecadaremos muito mais.

Foram milhares os Josés e as Marias transformados, pelo simples cruzamento de dados fiscais, em grandes devedores. Mas devedores sem capacidade de contribuir são devedores fictícios. A brilhante inteligência que inventou a mágica talvez tenha se jactado de elevar a taxa da administração fiscal da União a níveis nunca antes vistos. Já estávamos mais ou menos acostumados com a regressividade. Já sabíamos que, no Brasil, pobres e ricos não pagam impostos: os ricos, por mágica; os pobres, porque não têm com o que contribuir. A novidade do lulismo foi seu requinte de crueldade, para criar, ao fim e ao cabo, dívida ativa fictícia, para engrossar estatísticas.

A nova mágica foi levada ao Supremo Tribunal Federal e julgada em recurso extraordinário de reconhecida repercussão geral, com efeitos erga omnes. Nunca a expressão latina foi tão verdadeira. O Supremo decidiu contra todos. O recurso possivelmente não estava bem fundamentado, porque reclamava de ofensa à isonomia com as grandes empresas, beneficiárias de regalias, como o Refis. Ficou fácil para o relator, ex-advogado do PT, puxar maioria de todos, menos um, no sentido de que a lei era igualitária, porque todos os microempresários eram igualmente arrochados, e não se pode comparar qualidades distintas: pequenos empreendedores e grandes empreendedores. E assim o Supremo legitimou a sinistra invenção. O ministro Dias Toffoli, em seu voto, elogiado pelos pares como brilhante, na melhor das hipóteses, não chegou a compreender a invenção da lei nova, pois disse que a “vedação de adesão ao Simples Nacional já estava presente no Simples Federal, de que tratava a Lei nº 9.317/96 (art. 9º, XV), não tendo inovado a LC nº 123/06 a esse respeito.” Os dois outros argumentos do relator são ilícitos. Por abuso da analogia, o relator sustentou que a legislação discrimina com legitimidade pagadores e inadimplentes, proibindo os últimos de contratar com a administração pública. Mas uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa. E por petição de princípio, o relator convenceu seus colegas de que se o inadimplente não queria nem ao menos parcelar seus débitos, mereceria mesmo a guilhotina, a exclusão. Ninguém percebeu que faltava ao argumento aquilo que ele pressupõe: quem disse que José e Maria não quiseram parcelar seus débitos? Quem disse que podiam? Por algum tempo, na administração fiscal federal vigorou forte preconceito contra o parcelamento de débitos derivados de crimes contra a ordem tributária, como ocorre com a parcela previdenciária do empregado, retida pelo empregador, por isso assimilado por lei ao fiel depositário. A microempresa só paga a parcela retida, não paga a parcela patronal, daí ser difícil estabelecer como fato provado que o inadimplente não quis nem ao menos parcelar seus débitos.

O novo regime fiscal inventado pelo partido dos trabalhadores é um regime jacobino, de promoção da virtude fiscal da pontualidade sob terror. José, Maria, empreendedora da pequena escola de bairro, a vizinha de Maria, com sua pequena confecção, e milhares de outros Josés e Marias, passaram, por mágica do governo dos pobres, a sofrer “essa coação política, visando manter-se em dia com o Fisco, sob pena de ir (…) para o buraco, ter a situação – que o Diploma Maior visa beneficiar, visa melhorar – prejudicada.”7

As listas de novos-pobres começaram a chegar na virada do ano de 2007. Eram publicadas em editais, para ciência ficta dos interessados. Mas os contadores de José e de Maria seguiam entregando suas guias de informações à Previdência dando clique no regime do Simples. A justiça presumiu que faziam isso por orientação de seus clientes. E José e Maria descobriram-se, subitamente, não apenas devedores, mas criminosos. Porque declarar-se contribuinte de um regime do qual se foi excluído, com o propósito de pagar menos tributo, é crime de sonegação fiscal. E agora, José?

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?

Os novos-pobres do lulismo são invisíveis. Apenas quem os conheceu nessa jornada, desinteressante para os intelectuais do igualitarismo supostamente redentor da pobreza, sabe para onde marcham. Sem empresa, sem empregados, sem faturamento, Maria e José marcham, com dificuldade, para instituições conveniadas pela Justiça, onde pagarão suas penas em prestação de serviços à comunidade.

Marx e Proudhon divergem em tudo, menos nisso: governo autoritário e tributação pesada são idênticos, diz Marx8. E Proudhon pergunta: se o pobre não alimentar César, o que César irá comer?9

Carregados de preconceitos, nossos estudiosos de humanas, com suas teorias de classes, não compreendem o regime que legitimam. Qualquer teoria de classes funciona em sociedades estáveis, elas não se prestam para sociedades em mudança.10 Por isso, nenhuma teoria de classes sociais descreve adequadamente a contrarrevolução lulista, que desconstituiu o povo brasileiro e o dividiu em duas partes. Essas duas partes ainda podem ser descritas pela caricatura descrita por viajante americano, na década de 1920: existe no Brasil uma “massa desarticulada a que chamarei ‘povo’”. Mas também existe aqui

(…) outra classe altamente articulada a que chamarei “traidores do povo”. São letrados, capazes de compor frases sonoras … Conhecem o conforto das moradias arejadas. Sabem muito mais a respeito do resto do mundo que de seu próprio país. O governo é a missão para a qual julgam ter nascido.11

Já podemos, enfim, compreender melhor a virulência da nova tradição intelectual forjada para legitimação do lulismo. Se não existe almoço grátis, também não existe preconceito gratuito. A constituição da classe média como classe inimiga, e sua demonização, são apenas máscaras. Jacques Derrida trouxe uma interpretação nova à tradicional falsa consciência marxista. Ele disse que as fantasias de heróis das revoluções passadas, de romanos e de profetas bíblicos, não eram apenas ilusão de consciência, mas uma máscara destinada a ocultar a violência que cometeriam em nome da revolução.12A maldição da classe média é uma máscara desse tipo, forjada para ocultar a fraude e a violência do lulismo.

*

1Raymundo Faoro, Os Donos do Poder: Formação do Patronato Político Brasileiro, vo. 2, 10 ed., São Paulo, Globo/Publifolha, 2000, p. 355.

2Walquíria Leão Rego & Alessandro Pinzani, Vozes do Bolsa Família: Autonomia, Dinheiro e Cidadania, 2 ed., São Paulo, Unesp, 2014, capítulo 1, “Ouvir a voz dos pobres”, pp. 31ss.

3Segundo expressão do Ministro Marco Aurélio, Voto vencido. Em Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário 627.543/RS, Relator Ministro Dias Toffoli, julgamento em Plenário em 30 out. 2013.

4PLP 123/2004, Projeto de Lei Complementar, Jutahy Junior – PSDB/BA, Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=150559, Acesso em 16 set. 2020.

5PLP 210/2004, Projeto de Lei Complementar, Poder Executivo, Disponível em https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/268772, Acesso em 16 set. 2020.

6PLP 123/2004, Parecer do Relator Deputado Luiz Carlos Hauly, p. 14, Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=364342&filename=Tramitacao-PLP+123/2004, Acesso em 16 set. 2020.

7Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário 627.543/RS, op. cit., Voto vencido do Ministro Marco Aurélio.

8Die Steuer ist die Lebensquelle der Bürokratie, der Armee, der Pfaffen und des Hofes, kurz, des ganzen Apparats der Exekutivgewalt. Starke Regierung und starke Steuer sind identisch. Karl Marx, Der achtzehnte Brumaire …, op. cit. p. 202.

9(…) if the proletaire does not feed Caesar, what will Caesar eat? And if the poor man does not cut his cloak to cover Caesar’s nudity, what will Caesar wear? That is the question, the inevitable question, the question to be solved. Pierre-Joseph Proudhon, System of Economical Contradictions: or, The Philosophy of Poverty, Trad. Benjamin R. Tucker, 1888, Reprint by Skyler J. Collins, 2015, p. 223.

10 Karl Polanyi, The Great Transformation: The Political and Economic Origins of our Time, Boston, Beacon Press, 1957, p. 152.

11Apud Raymundo Faoro, Os Donos do Poder…, op. cit., p. 375.

12Jacques Derrida, Specters of Marx …, op. cit., pp. 114-115.