(mensagem aos novos colegas do MPF, em 2 de dezembro de 2021)
Escrevia-se a Constituição, enquanto jovens em Brasília, na banda Legião Urbana, lançavam o hit “Que país é esse?”
A pergunta era retórica: naqueles dias todos nós sabíamos perfeitamente que país seria esse. Era tempo de promessas, de esperanças, de união. Em cartoon da Laerte, registrado em livro comemorativo das constituições brasileiras, lia-se – “não há túnel no fim da luz”.1
Todo mundo era democrata, ninguém era fascista, racista ou misógino. Foi nesse ambiente que ingressei no MPF, em 1991.
Vale rememorar o discurso de saudação aos ingressos do X Concurso, pelo PGR Aristides, que, 30 anos depois ainda nos emociona – mesmo quando não temos mais tantas certezas sobre quem somos. Dizia o PGR, então (em resumo):
- que ingressávamos numa casa com carências enormes – mas, o que é curioso, todas de ordem material: “Mostramos-lhes, principalmente, as nossas deficiências que são de toda ordem: carência de Procuradores, carência de auxiliares administrativos, carência de edifícios, carência, enfim, de recursos materiais.”
- que era importante compreender que não é apenas o conhecimento que faz um Procurador da República, mas, sobretudo a independência funcional. A mensagem do PGR jamais questionou que esse princípio seria a “alma” do Ministério Público. Não se cogitava de unidade, a ordem unida de soldados batendo continência a seu sargento ressoava para nós como algo incompatível com a “alma” do Ministério Público. Tudo que o PGR aconselhava era que não se fizesse da independência funcional apanágio para que o indivíduo usasse a instituição para seu proveito pessoal, ainda que meramente emocional. A independência funcional brilhava tanto que o PGR dizia ser algo “evidente”:
é evidente, que a um Procurador da República não basta o domínio da ciência do Direito.
Outros atributos lhe são exigidos, como a independência funcional, que é um dos princípios institucionais, posto na Constituição do Brasil.
É preciso, contudo, não esquecer que a independência, a altivez e a determinação no agir não são atributos antagônicos à prudência, à humildade e à lhaneza de trato. Ser prudente sem ser omisso; ser humilde, sem ser vassalo; ser afável no trato, até na discordância, é preciso!
É preciso não esquecer que o Ministério Público é alicerce do regime democrático e dos direitos sociais e individuais indisponíveis, para não cairmos na atraente tentação de que é ele simples meio de sobrevivência pessoal ou familiar, ou instrumento de promoção individual, ensejando o aparecimento de nossa imagem nos meios de comunicação social.
É preciso não esquecer que o aspecto formal da autoridade de que todos nós estamos investidos não deve ser demonstrado através de atitudes pejorativamente denominadas de autoritárias.
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Passados 25 anos, este curso de ingresso na carreira poderia ter tido como guia para conhecimento da casa um colega como Deltan Dalagnol, que registrou em sua memória da Operação Lava Jato:
Minha carreira como procurador da República tem um ponto em comum com a história do Brasil: ambas são histórias de fracassos na luta contra a corrupção. É claro que não era isso que eu tinha planejado para a minha vida profissional quando ingressei no Ministério Público. Meu sonho era contribuir para a justiça. Trazia comigo a regra de ouro de meu pai, de vencer pelo esforço e pela disciplina. Eu acreditava em melhorar a vida das pessoas, mas meu esforço não estava adiantando nada. Foi um choque de realidade. Tanto fazia eu dedicar mais ou menos horas ao trabalho, justamente nos casos mais relevantes o resultado era sempre o mesmo: nada.
Descobri que eu era apenas mais uma pequena peça de uma grande engrenagem. Independentemente de quão bem cada peça individual funcionasse, o modo como as muitas outras tinham sido organizadas e concatenadas fazia do sistema de Justiça uma grande máquina destinada a produzir, quase inevitavelmente, a impunidade dos colarinhos brancos.
O que fazer? Eu poderia me tornar um burocrata. Bater carimbos e receber meu salário no fim do mês. Desistir não era uma opção ruim. Nas circunstâncias que descrevi, eu poderia me justificar perante o tribunal da minha consciência. Trabalho infrutífero é mesmo inútil. Outra opção seria continuar insistindo. Quanto mais segui insistindo, mais me convenci de que a luta contra o crime de colarinho branco dentro do sistema não era suficiente. Precisávamos atacá-lo de fora para dentro.2
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Registramos dois documentos que retratam dois momentos na vida da instituição. Seus autores são sinceros, suas memórias são autênticas. Mas aqui nos perguntamos, numa dúvida verdadeira e não apenas em pergunta retórica. Que MP é esse em que hoje ingressais? Em metáfora médica, parece que sofremos de transtorno bipolar, e pulamos da fase de euforia para a depressão. Ninguém mais consegue recebê-los dizendo que nossos problemas são apenas materiais, como “falta de edifícios”: hoje sobram edifícios. Nossos problemas são também espirituais, mais propriamente de identidade. Mais sábio do que recebê-los com os versos do portal do Inferno de Dante – Lasciate ogne speranza voi ch’entrate – será iniciarmos uma reflexão e um diálogo franco sobre nossa “crise” de identidade.
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Mas então quem somos, afinal?
Goethe certa vez disse que depois dos 30 somos responsáveis por nossa face. Entre os extremos da euforia e da depressão, poderíamos começar nosso tratamento pelo reconhecimento da realidade: nós somos jovens. Jovens demais, e não tínhamos memória (tradição) democrática. O MP que (re)conhecemos hoje nasceu na Constituição de 1988. Aprendeu a andar por seus próprios pés muito depois. A lei da ação civil pública é de 1985. Em 1991, ninguém sabia o que fazer com ela: não existiam ações civis públicas. A lei de improbidade é mais nova, do período do breve governo Collor. Minha geração no MPF deu os primeiros passos, na época, para questionamento do confisco da poupança do Plano Collor. Nossa lei orgânica é de 1993. Até então vivíamos em regime de monarquia constitucional: corregedor não havia, o artigo 28 do CPP era letra morta, nenhum juiz remetia arquivamentos ao PGR – ou apenas raramente o fazia.
Como jovens que somos, é natural que tenhamos sofrido turbulências da adolescência. Éramos os novos “tenentes” – diziam críticos do MP, com alguma razão. Nessa crise de adolescência, a sagrada independência funcional foi sendo mais e mais desprezada. Conseguimos modificar o art. 28 do CPP para que todo arquivamento de persecução penal fosse resolvido pela instância superior do MP, situação felizmente resolvida por decisão provisória do Ministro Fux, correta, ainda que processualmente abusada. Porque o Judiciário reconhece melhor o princípio governativo do MP – a independência funcional – do que instâncias revisoras internas, por vezes mais sedentas de poder que de racionalidade.
Enquanto sopraram os bons ventos da libertação, tínhamos uma imagem de MP no modelo projetado pela Constituição. O PGR Aristides não perguntava que MP é esse em que ingressais. Dizia, então, que:
Sabemos o que ele é. Sabemos as suas finalidades e o que devemos fazer para atingi-las. Basta, para tanto, praticar a teoria constitucionalmente impressa.
Mas, tal prática exige uma postura de independência, de altivez e de determinação no agir, aliada à prudência, à humildade e à lhaneza de trato, sem que se possa ver em tal aliança qualquer paradoxo.
É hora de praticar o Ministério Público, em toda a sua extensão. E a prática há de ser sinônimo de vida.
Em nossa agitada adolescência, fomos descobrindo que não é fácil “praticar a teoria constitucionalmente impressa” e que disfunções na leitura e compreensão dessa teoria podem levar a criatura projetada pela Constituinte a crises e tendências autodestrutivas. A instituição não morre, por ser permanente, mas ela pode perder seu élan vital, seu espírito. A Constituição não tem culpa disso. Ela projetou uma instituição em dicção legal de rara perfeição. Ali estão o conceito, os princípios governativos e as funções que permitem pôr em movimento o conceito. No conceito, andou bem o constituinte em não falar nos hoje abusados “direitos humanos”. Confiou-nos a guarda do regime democrático. Mas a verdade do conceito não pode ser separada das funções que a lei previu. Ao promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei, estamos guardando o regime democrático.3 O que não se via, naquela infância, é que no arcabouço infraconstitucional não tínhamos material legal de tal qualidade. É suficiente dizer que tínhamos a absoluta irracionalidade da chamada prescrição retroativa (abolida em maio de 2010, antes da Lava Jato e das 10 Medidas). Ao deparar-se com a montanha de crimes financeiros e de corrupção descoberta pela Lava Jato, Deltan Dalagnol tem inteira razão em sua mirada depressiva:
Somos como engenheiros incumbidos de construir arranha-céus, mas o legislador nos oferece tábuas, martelos e pregos para o serviço. Não surpreende que a Lava Jato seja um ponto fora da curva. O construtor precisa de aço e concreto para edificar um arranha-céu, isso não é um favor que alguém lhe faz. É o mínimo necessário para que a obra possa ser realizada.4
A doutrina constitucional tende a limitar-se a descrever o projeto desenhado na Constituição. Aí tudo é perfeito e moderno. Poucos enxergam que as ferramentas de trabalho continuaram arcaicas. Mesmo quando o Congresso moderniza um pouco o instrumento de trabalho, certa tradição e inércia que integram o espírito da instituição fazem com que se tornem letra morta na lei. Refiro, por exemplo, a reparação do dano civil na ação penal, ausente em muitas denúncias, porque não se atualizaram os modelos.
Porém, se o diagnóstico de Deltan é realista e correto, o remédio proposto é uma terapêutica personalíssima dele. A carreira parlamentar já se anunciava em 2017, quando Deltan publicou sua memória da Lava Jato:
Desistir não era uma opção ruim. (…) Trabalho infrutífero é mesmo inútil. (…) Outra opção seria continuar insistindo. Quanto mais segui insistindo, mais me convenci de que a luta contra o crime de colarinho branco dentro do sistema não era suficiente. Precisávamos atacá-la de fora para dentro.5
Quem hoje ingressa e os que ficamos por aqui precisamos aprender a tirar o melhor das ferramentas de trabalho – ainda ou sempre imperfeitas – e combater o crime de dentro para fora.
Uma terapêutica inicial, indispensável, é o conhecimento adequado de nossos fracassos. Sem esse conhecimento seremos reféns de impressionismos invariavelmente permeados de preconceitos. Vou me concentrar no crime, terreno em que me movimento com um pouco mais de segurança. Tivemos preconceitos clássicos em nossa adolescência. Diziam-nos, vocês devem se ater a pegar tubarões. Esse preconceito é prejudicial ao MP porque consolida o imaginário do heroísmo, de alguns, e confere um deficit de autoestima a quase todos os outros. Se eu não pego um tubarão por mês, quem sou? Não sou nada. (No preconceito de Deltan, “um burocrata” que tudo que faz é “Bater carimbos e receber meu salário no fim do mês”6). O fantasma do tubarão pressupõe que essa figura seria o modelo a ser seguido por todos nós. Mas esse modelo não tem lastro de realidade. Seria como mandar alguém pescar tubarões num pedaço de mar onde não existem tubarões, só peixe miúdo. O próprio Deltan Dalagnol desde as primeiras palavras em sua memória da Lava Jato confirma isso. A Lava Jato “não existiria sem uma série de coincidências improváveis”.7 Outro lado da moeda, é que o mito do tubarão produz impunidade miúda, mas por atacado, por ampliação arbitrária do padrão de insignificância penal. O promotor de Justiça pode perdoar o passador de moeda falsa, afinal é uma cédula só e o prejuízo não é dele. Mas não o faz por delegação da sociedade. O pequeno comerciante não aceita entregar cem reais na mão de golpista.
Outro preconceito prejudicial à instituição envolve o arquivamento. Alguns dizem “você arquiva demais”, querendo insinuar que você não trabalha direito, ou arquiva por preguiça. Por vezes vemos esse preconceito nas decisões da 2ª CCR – sob o jargão do “arquivamento prematuro” – investigue mais, qualquer coisa!
Caminhamos desde a euforia até a depressão que rondaram nossa adolescência. Considerando o termo inicial da lei orgânica, de 1993, nos aproximamos dos 30 anos, prazo para alguém tomar vergonha na cara – traduzindo com alguma liberdade o dito de Goethe.8 Um alento é perceber que a instituição começa a assumir com seriedade a tarefa de contabilizar seus fracassos. O projeto de contabilidade de resultados, implementado pela Corregedoria, caminha nesse sentido. Collingwood sabiamente dizia, “a estatística é boa empregada, mas péssima patroa”.9 Mas ela só será nossa patroa se quisermos.
Sem conhecimento confiável dos fatos, somos reféns de preconceitos. Seremos conduzidos pela euforia de soluções mágicas, sem lastro de realidade. Uma dessas soluções é a da task force. Cria-se o grupo e o problema parece resolvido. O esforço interinstitucional para repressão ao trabalho escravo é um considerável avanço, e o grupo trabalha muito bem. Mas precisamos unir as duas pontas do trabalho, e descobrir por que o crime em questão é campeão de absolvições. Assim como o crime de dispensa ou inexigibilidade irregulares de licitação. Pode ser que a solução tenha que vir de fora, como prega Deltan, se a lei for de fato muito ruim. Mas precisamos considerar a hipótese de que não estejamos trabalhando tão bem. E fazer a nossa parte.
Dito isso, finalizo, repetindo saudação recebida do PGR Aristides em 1991.
É hora de praticar o Ministério Público, em toda a sua extensão. E a prática há de ser sinônimo de vida.
Se assim é, meus novos colegas, só posso felicitá-los, dizendo:
Vivamos o Ministério Público!
Muito obrigado!
Brasília, 22-fevereiro-1991
Marco Aydos
Brasília, 2 de dezembro de 2021
1Cf. Maria Izabel Branco Ribeiro (Org), As Constituições Brasileiras, São Paulo, FAAP, 2007, p. 291.
2Deltan Dalagnol, A Luta contra a Corrupção: A Lava Jato e o Futuro de um País marcado pela Impunidade, Rio de Janeiro, Primeira Pessoa, 2017, p. 31.
3O constituinte com certeza não delegou a um clube de funcionários (de feitio jacobino), sem delegação direta da fonte de onde emana todo o poder, para guardar a democracia que vive no seu imaginário, seja ela participativa, militante, dirigida, etc.
4Deltan Dalagnol, op. cit., p. 226-7.
5Ibid., p. 31.
6Ibid. p. 31.
7Ibid., p. 13.
8Agnes Heller, Die Welt der Vorurteile: Geschichte und Grundlagen für Menschliches und Unmenschliches, Wien/Hamburg, Konturen, 2014, p. 155: Goethe hat einmal gesagt, alle Menschen über 30 seien für ihr Gesicht verantworlich, und er hatte recht.
9R. G. Collingwood, The Idea of History, London/Oxford/New York, Oxford University Press, 1956, p. 228.