Arquivo do mês: janeiro 2021

Recordai

Simon Fujiwara (1982), «Hope House» (2018-Kunsthaus Bregenz), Instalação sobre réplica da casa de Anne Frank – https://www.estherschipper.com/de/exhibitions/496/

Não tomarás o Nome do Senhor teu Deus em vão – Êxodo 20:7

Ai, palavras, ai, palavras, / que estranha potência a vossa! (…) Sois de vento, ides no vento, / e quedais, com sorte nova! (…) A liberdade das almas, / ai! com letras se elabora…/ E dos venenos humanos / sois a mais fina retorta: / frágil, frágil como o vidro / e mais que o aço poderosa! Cecília Meireles, Romanceiro da Inconfidência, Romance LIII ou Das palavras aéreas

Imre Kertész, médium do espírito de Auschwitz, registrou que para além dos horrores, das vidas individuais, das mortes, do desejo ávido de justiça, uma angústia aterrorizante aderiu ao Holocausto: a angústia do esquecimento. Essa angústia foi perpassada também desde o princípio por um sentimento metafísico que caracteriza as religiões e o sentimento religioso.1

Em conferências sobre a culpabilidade alemã, logo após a libertação, o filósofo Karl Jaspers concluiu, de modo semelhante, que existe uma culpa metafísica envolvida no Holocausto, que vai além da política, da justiça e da moral. Essa culpabilidade fala como uma voz interior que nos acusa: eu sou culpado por ainda estar vivo.2 Diz ainda o filósofo, que o destino alemão poderia fornecer experiência a todos os outros. Mas apenas se puderem compreender essa experiência!3

Permitam-me, com a filósofa Agnes Heller, substituir o banalizado termo Holocausto, ou mesmo Shoá, por um lugar: Auschwitz.

Auschwitz é um lugar de memória, mas não dos judeus. Jerusalém é o lugar de memória dos judeus. “Auschwitz não é apenas um lugar, mas o contraponto de Jerusalém”. Religiosos de fé cristã descobriram, devido a Auschwitz, que nessa história representaram o papel de Caim. E que não se deve responder à pergunta de Deus, sobre onde está teu irmão, Abel, dizendo: Por acaso sou guardião de meu irmão? A toponímia Auschwitz designa um Abel coletivo, e simboliza a morte dos inocentes. Os religiosos recordarão que o inocente é o preferido de Deus. Alguns religiosos cristãos começaram a pensar que Jesus foi crucificado simbolicamente em Auschwitz, que O mataram de novo. E se realmente são cristãos, devem pedir perdão a suas vítimas, as que já não vivem e as que sobreviveram. Não importa se não foram autores diretos, nem se as vítimas não são as que morreram ou as sobreviventes. Porque aqui não se trata da memória individual, mas da memória coletiva, e do esquecimento coletivo.4

Com Kertész, Jaspers e Agnes Heller podemos situar Auschwitz num lugar religioso, e falar de uma culpa metafísica, além da experiência pessoal de ser culpável diretamente. Nós todos, que representamos o papel de Caim, somos culpáveis. Essa culpa metafísica é transmissível eternamente, como um pecado original. Mas existe um modo de alcançarmos nossa “purificação”. Voltando ao filósofo Karl Jaspers,

A questão decisiva é um fenômeno básico e eterno, que retorna hoje em forma nova: aquele que em derrota absoluta prefere viver, a morrer, pode viver apenas na autenticidade [in truthfulness], pois esta é a única dignidade que lhe resta.5

O modo possível de viver em autenticidade é não esquecer.

Não obstante, esquecemos, estamos esquecendo hoje. Mesmo progressistas, autoproclamados defensores dos direitos humanos, já estão esquecidos. A memória coletiva é mais frágil do que a memória individual, porque está sujeita a esquecimentos comissivos. Não se trata apenas de não lembrar, por esquecimento natural, ou derivado de traumas. O Caim coletivo, cujo lugar de memória leva o nome de Auschwitz, esquece Auschwitz de modo comissivo, produzido ideologicamente. Nós esquecemos Auschwitz ao profanarmos seu nome sagrado.

Progressistas, cientistas sociais, antropólogos, especialistas em relações internacionais, âncoras de telejornais, jornalistas, blogueiros, influenciadores, reais ou imaginários, e suas redes sociais, sem pudor sublimam o instinto de morte que produziu Auschwitz. Falam em nome da vida, em nome da verdade, em nome da razão, do progresso, da ilustração, da ética, da moralidade e do bem. Mas esquecem Auschwitz. Dois nomes sagrados estão associados a Auschwitz: genocídio, que não lhe é exclusivo, e negacionismo. Dois nomes sagrados são trivializados no proselitismo político de nosso tempo, de absoluta, ou pelo menos relativa, normalidade política: genocídio e negacionismo.

Quereis o impedimento do presidente? Lutai por ele. Ide às ruas, escrevei petições, dizei os fatos criminosos e os endereçai a quem de direito. Dois insultos, genocida e negacionista, não substituem a denúncia. São palavras que voam, mas cujo pensamento lhes é infiel. Palavras assim jamais chegam ao céu.

My words fly up, my thoughts remain below:

Words without thoughts never to heaven go.

William Shakespeare, The Tragedy of Hamlet, Prince of Denmark, Ato 3, Cena 3, linhas 100-101.

Uma causa boa não pode profanar o sagrado. Esteticamente, a causa torna-se obscena, pornográfica. Politicamente, imoral. Metafisicamente, ela põe à mostra, na superfície de suas palavras aéreas, a raiz de onde nasce: o desejo de morte. Não faz diferença que tal profanação seja de esquerda ou de direita. Behemot, deus representativo desse instinto, não é destro, nem sinistro: é imortal.

Recordai.

*

1Imre Kertész, A Língua Exilada, São Paulo, Companhia das Letras, 2004, p. 63.

2Karl Jaspers, The Question of German Guilt, Trad. E. B. Ashton, New York, Fordham University Press, 2000, p. 65.

3Ibid., p. 93. c

4Cf. cap. VII – Auschwitz y Jerusalén, in Agnes Heller, La Resurrección del Jesús Judío, Trad. Éva Cserháti, Barcelona, Herder, 2007, pp. 85-94.

5Karl Jaspers, The Question…, op. cit. p. 102.


Rostos e Nomes n’O Senhor das Moscas

O Senhor das Moscas não é uma distopia. É um drama político sobre a fragilidade da democracia liberal. Onde todos são absolutamente livres, ninguém está seguro de ter garantidas sua vida e propriedades. Apenas uma ordem civil pode assegurar civilidade, embora ela seja uma espécie de servidão: ela exige renúncia a tudo que se pode fazer, e obediência à lei, the rule of law.

No primeiro capítulo, O Som da Concha, assistimos à fundação de uma cidade nova, reconstruída a partir de vestígios de civilização. O design é o da reunião de todos num círculo, no meio do qual o orador é marcado pela posse de um objeto, como o cetro que Telêmaco, filho de Odisseu, carrega enquanto fala, na democracia liberal encenada na Odisseia. Mas a democracia incipiente fundada na ilha não é apenas grega, é também inglesa. Dois personagens principais estarão envolvidos nessa fundação: Ralph e Porquinho, que governam juntos, como Rei e Parlamento, versão idiossincrática da democracia insular, desenvolvida a partir da teoria dos dois Corpos do Rei.

A partir de fatores históricos dados a todas as nações europeias (…) foi, entretanto, apenas na Inglaterra que se desenvolveu uma teoria política ou legal consistente sobre os “dois Corpos do Rei”.

(…) a noção dos “dois Corpos do Rei” não pode ser separada dos primórdios do desenvolvimento e do ímpeto duradouro do Parlamento no pensamento e na prática constitucionais ingleses. Por representação, o Parlamento era o “corpo político” vivo do reino.1

Também na ilha de Golding, o Parlamento precede ao Reino. Porquinho descobre a função da concha, que funciona como o cetro de Telêmaco, para convocação da assembleia geral dos náufragos. Quando essa democracia fracassar, Porquinho carregará a concha em sua trajetória final: a concha explodirá. Ralph e Porquinho governam juntos, desde a fundação, numa democracia liberal em que veritas, non auctoritas, facit legem. Um dos momentos culminantes desse governo liberal é o chamado da concha para deliberação sobre um problema que assusta os pequenos: eles votarão se existem ou não existem monstros.

No segundo capítulo, Fogo na montanha, começamos a assistir à derrocada daquela incipiente organização civil, à destruição da democracia pelo abuso demagógico da democracia, até o surgimento de um tirano, líder de uma segunda revolução, que só terminaria quando engolisse todos os seus filhos, como em seu antecedente histórico, a ditadura jacobina. A liberdade absoluta tende ao terror, e à morte de todos. Mas a morte decorrente do absolutismo da liberdade não é uma morte essencial, como a do guerreiro na batalha, lutando pela pátria e por seus filhos: é uma morte sem sentido, não muito diferente do que cortar a cabeça de um repolho, segundo descrição de Hegel para a morte sob o terror jacobino.2

Do terceiro capítulo, até o final, assistimos às vicissitudes do governo do tirano, e à gradual destruição da polis incipiente, deixando rastro de terra arrasada, a começar pela negligência no cuidado com o bem comum, representada pelo desleixo na vigilância da fogueira na montanha, símbolo de resistência às dificuldades, por manter viva a esperança de resgate. Na sequência, acompanhamos a gradual revogação dos parcos vestígios de civilização herdados do antigo regime, até a perda definitiva dos interditos consagrados nos mandamentos “Não roubarás” e “Não matarás”. Rompido o interdito ao roubo, matar é passo curto, um simples aperto de válvulas da engrenagem, operação quase natural de manutenção do sistema.

À crise política desencadeada pelo fracasso da polis, soma-se uma crise de identidade: os meninos náufragos não sabem mais exatamente quem eles são.

Os antigos não tinham crises de identidade, eles sabiam quem eram. A identidade individual torna-se problemática na modernidade, e será objeto de reflexão na filosofia, primeiro por Locke, na sequência, por Leibniz. Para Locke, a identidade individual é decorrência da permanência do sujeito ao longo do tempo, através da memória. A essa noção, Leibniz opôs a seguinte objeção: se o indivíduo perder a memória, perderá por isso sua identidade? Leibniz responde que não, porque o indivíduo com amnésia será identificado pelos outros. Para Leibniz, a identidade do indivíduo é objetiva, e se escreve em seu rosto e em seu nome. Podem existir pessoas com o mesmo nome, mas elas não terão o mesmo rosto. Às duas teorias, a filósofa Agnes Heller objeta que uma não é totalmente subjetiva, assim como a outra não é completamente objetiva. A memória individual é também decorrência do processo de socialização e conterá elementos compartilhados com outros, como memória geracional. Por seu turno, a identidade objetiva não é apenas objetiva, pois como a filósofa costuma citar, Goethe certa vez disse que toda pessoa com mais de 30 anos é responsável por sua face, e ele tinha razão – Goethe hat einmal gesagt, alle Menschen über 30 seien für ihr Gesicht verantwortlich, und er hat recht.3

Conheceremos as identidades dos três protagonistas, inicialmente, por seus rostos e nomes, segundo a teoria de Leibniz, e só depois, na ordem em que essa identidade aparece no romance, pelos significados de sua identidade coletiva, sua memória.

1. O menino justo

Entre os três protagonistas, Ralph manterá a identidade de seu nome; Porquinho não terá nome; Jack mudará de nome, como num renascimento, experiência que evoca a conversão dos “santos”, do radicalismo político inglês que cortou a cabeça de um rei.

A face de Ralph é descrita por Golding com o humor de Cervantes, quando diz que não sabe se é bom, mas sabe dizer que não é mau. O perfil de seu rosto mostra “eyes that proclaimed no devil“, descrição que se perde ao ser vertida, na tradução brasileira, como “suavidade da boca e dos olhos [que] demonstrava brandura”.

O menino louro, que conhecemos em primeiro lugar pelo codinome de menino justo, the fair boy, tem lá seus percalços de injustiça. Mas se aprendemos com Aristóteles que um ato injusto não faz de alguém uma pessoa injusta, que apenas a disposição permanente para a injustiça torna alguém injusto, compreenderemos que a injustiça cometida por Ralph em relação a Porquinho não faz dele um menino injusto. Ele tem inclinação permanente para a justiça, é um fair boy. Mas é também um menino, e não perde a deixa de fazer bullying com Porquinho, algo que não está no enredo gratuitamente, porque envolve a recusa de Golding em conceder a Porquinho a graça de um nome.

Ralph e Porquinho são os primeiros sobreviventes a se encontrarem. A primeira pergunta é óbvia, qual é seu nome? O menino de cabelos louros (the fair boy) responde que se chama Ralph. O outro, o menino gordinho (the fat boy), espera a mesma pergunta em reciprocidade. Mas ela não vem (this proffer of acquaintance was not made). O tradutor brasileiro escreveu “sinal de intimidade”, ao contrário do sentido original. A reciprocidade da pergunta significa um sinal de reconhecimento mínimo, não de intimidade. Reconhecimento de que o outro teria o mesmo direito de ser conhecido por seu nome, elemento essencial de sua identidade. Na sequência, Porquinho disfarça o mal-estar e tenta novamente ser reconhecido, dizendo a Ralph: eu preferia não ter nenhum nome a ser chamado pelo nome que eu tinha antes do acidente. Ralph pergunta que nome era aquele, e agora sim, como sinal de intimidade, o menino gordo confidencia: era Piggy, Porquinho. Depois Ralph se aproveita disso e sacaneia o menino gordinho, apresentando-o a todos os novos integrantes da sociedade de sobreviventes: o nome dele é Piggy, Porquinho! Mas Ralph é só um menino, humano demais, a gente simpatiza com ele. Ele foi desleal, mas se desculpou com sinceridade: melhor ser Porquinho do que Gordinho, mas de qualquer modo me desculpe (Better Piggy than Fatty … Anyway, I’m sorry). Jack, por sua vez, sempre fingirá desculpar-se, de modo insincero, como quando pede desculpas por ter deixado o fogo apagar.

O rosto de Ralph é a face exterior do seu interior: o rosto de alguém que escolheu a si mesmo como um homem bom, decente, responsável. Ele vacila, às vezes, porque não é uma caricatura, é humano. Em certo momento, ele confidencia a Porquinho que devia desistir dessa democracia da lei da concha, e entregar de uma vez os pontos (e o poder) ao tirano. Porquinho profetiza a consequência disso: se você desistir, Jack virá atrás de mim, para me caçar como a um porco. Ralph então desiste de desistir. Ele é a encarnação da utopia, a promessa do melhor mundo moral possível. Podemos fechar aqui nosso primeiro argumento: O Senhor das Moscas não é uma distopia. É uma tragédia na qual o coro dos pivetes (littluns) é disputado por dois princípios: Ralph encarna a esperança, que não abre mão da salvação, encarna o princípio de vida; Jack encarna a resignação, ele não deseja ser resgatado, porque na ilha tem tudo que podia querer: potencialmente todo o poder para si. Se há uma necessidade numa tirania de feitio jacobino, guiada pelo instinto de morte, é que ela sempre será resgatada desde fora, porque seu primeiro motor é a morte inessencial. A salvação virá do mar. O oficial da Marinha que desembarca na ilha reencena simbolicamente o dia-D. Ralph é filho querido de Golding, que certa vez também desembarcou no continente, para salvar a Europa de uma tirania cujo princípio era a morte. Jack, o vencedor, é finalmente vencido, também pela resistência de um menino bom.

A pessoa decente é decente caso as condições políticas venham ou não a conduzir ao ressurgimento generalizado da moralidade em meio a uma realidade não utópica. Mas não será relevante sugerir que a pessoa decente, que permanece sendo decente, que assim encarna a promessa do melhor mundo moral possível, sejam quais forem as circunstâncias, é a encarnação da utopia absoluta? 4

O governo de Ralph é uma democracia liberal, não apenas pelo caráter sagrado da “concha”, mas também porque Ralph não concentra, antes divide, poderes. Quando Jack perde a primeira eleição, ele logo firma um compromisso e lhe oferece o comando do “coro”, que poderá funcionar como seu “exército”: os caçadores. Ralph se destaca na escala da grandeza e na escala da bondade; é um pouco Hamlet, um pouco Horácio. Será o protagonista de um drama político: a derrota da democracia diante do poder avassalador da “liberdade absoluta” e do “terror”, the rule of no law do mundo de Jack. Sua culpa trágica é o sentimento de sentir-se culpado, sem ser culpado, pela morte de Simon, primeiro, e de Porquinho, mais adiante.

Mas o final do romance é semelhante ao final feliz da tragédia de Ricardo III: pois a guerra civil terminou. Nas palavras de Richmond: Now civil wounds are stopped; peace lives again. That she may long live here, God say Amen.5

2. O estrangeiro absoluto

Porquinho é o protagonista de um drama particular dentro da tragédia política: um drama de assimilação fracassada. Porquinho é fundador, ele descobre os usos da concha para convocação da assembleia geral para discussão dos problemas de todos. O parlamento de Porquinho precede à realeza de Ralph, eleito em deliberação desse mesmo parlamento. A gente espera que o fundador da cidade seja heroico, um tipo de Teseu, que reúna força e coragem, mas encontramos no romance de Golding tudo ao contrário. Porque a democracia liberal é o mais frágil dos governos, Golding deu a Porquinho todas as vulnerabilidades possíveis.

A maior vulnerabilidade é não ter uma identidade. Porquinho não terá direito a um nome. Quem recusa a alguém identificar-se pelo nome, está a um passo de assassiná-lo. No momento mais dramático de seu romance Sorstalanság, Sem Destino, Kertész faz um soldado russo perguntar ao protagonista, na libertação do campo, seu nome, e ele responde, em alemão, como todos no campo haviam decorado, o número inscrito em seu braço: “Vier-und-sechzig, neun, ein-und-zwanzig”. No final, a caminho de casa, o protagonista é abordado em cada estação, se por acaso deparou-se com algum parente, com tal e tal nome, ao que ele respondia: num campo de concentração não se faz muito uso de nomes.6 Quem cobre seu rosto e recusa-se a chamar um Estado soberano por seu nome, designando-o Entidade, prepara-se para aterrorizar e assassinar.

Porquinho, o fundador do Parlamento, tem todas as fragilidades que alguém podia imaginar: não é só obeso, mas também asmático, o que lhe dificulta a fuga diante do inimigo. Não é só obeso e asmático, mas fortemente míope, e não enxerga nada sem as grossas lentes de seus óculos. Golding retrata Porquinho mais no corpo pesado, obeso, da cor de quem não toma sol (palely and fatly naked), e que não sabe nadar, porque não aprendeu devido à asma. É o único cujo cabelo não cresce, como se tivesse nascido calvo. Da cabeça de Porquinho sabemos que é uma cabeça gorda, cheia de pensamentos, porque ele ficava muito tempo na cama, doente, e pensava muito.

Por suas exageradas fragilidades, que beiram a caricatura, Porquinho retrata na história a fragilidade do único regime político que pode nos salvar diante dos poderes letais desenvolvidos por vínculos ancestrais. Não por inteligência, mas por intuição, Porquinho será o primeiro a ter consciência do perigo que corre. Desde a cena orgiástica do canto de morte ao porco do mato, ele sabe que, só por ser Porquinho, corre perigo de ser abatido pelos colegas. A democracia da lei da concha precisa sobreviver porque Porquinho precisa sobreviver. Golding deu-lhe todas as fragilidades, mas quando o fogo apaga, só ele possui o princípio da vida, que pode reacender a fogueira, produzir fumaça, e chamar resgate. Mas Porquinho sabe que todo mundo curtia pegar no pé dele. Porquinho é um estrangeiro absoluto, como Shylock e Othello. O estrangeiro absoluto é uma “função”, necessária, por isso tolerada, mas não é uma pessoa, ninguém o vê em sua humanidade. E ninguém o aceita. Na interpretação de Agnes Heller, o estrangeiro absoluto aparece em duas peças de Shakespeare, não por acaso ambas encenadas numa cidade cosmopolita, Veneza. Todos os outros personagens de Shakespeare são estrangeiros condicionais, como na tradição grega: personagens que estão por algum motivo fora de casa, mas que possuem uma casa para onde retornar. Othello e Shylock são estrangeiros absolutos porque são personagens desenraizados num mundo que os emprega e usa, mas não os aceita. E como Porquinho, os dois se iludem de que serão aceitos como iguais, preservando sua diferença: a cor da pele, do mouro, a religião, de Shylock. Seus dramas são dramas de assimilação fracassada. Também por isso, ambos são normalmente chamados pelo tipo que representam, mais do que por seus nomes, eles são o “mouro” e o “judeu”.7

A caça a Porquinho reencena a cerimônia orgiástica de celebração da morte da porca, com seu círculo de caçadores entoando canções de morte, um pogrom, uma cerimônia de incitação à morte do estrangeiro absoluto.

3. O tirano

A fundação da democracia liberal começa por uma espécie de recenseamento dos sobreviventes. Ralph propõe: é melhor que todos tenham um nome, eu sou Ralph. Porquinho diz que já tem quase todos os nomes, quando Jack reclama que aqueles eram nomes de crianças, que podiam ser trocados: “Kid’s names” … “Why should I be Jack? I’m Merrydew”. Nomes de crianças. Por que eu seria Jack? Serei Orvalho Contente.

Jack expressa em seu rosto sua identidade moral: “his face was crumpled and freckled, and ugly without silliness. Out of this face stared two light blue eyes, frustrated now, and turning, or ready to turn, to anger” (rosto enrugado e sardento, feio, mas sem sinal de estupidez. Nesse rosto despontavam dois olhos azul-claros, agora frustrados, mas prontos para armar-se de raiva).

Ao preparar-se para barbarizar, Jack planejará um rosto novo, na verdade uma máscara na qual se esconderá, liberado de toda vergonha e autoconsciência (Jack planned his new face … held up a mask … behind which Jack hid, liberated from shame and self-consciousness).

Jack não é um menino justo e destina a si mesmo o papel de um Ricardo III, que em sua apresentação nos diz: I, that am curtailed of this fair proportion (…) Deformed, unfinished, sent before my time/ Into this breathing world, scarce half made up (…) since I cannot prove a lover, / To entertain these fair well-spoken days, / I am determined to prove a villain (…) Plots have I laid, inductions generous,/ By drunken prophecies, libels and dreams, / To set my brother Clarence and the king/ In deadly hate the one against the other.8

Como Ricardo III, Jack é carismático. Porque “incitar o medo e abster-se de reconhecer qualquer limite formam uma espécie de carisma”9 Mas Jack é também um perfeito bonapartista: sua força é mais propaganda do que verdade. A cena principal em que ele mostra seu poder é uma fraude. O porco do mato que Jack mata não é um porco, é uma porca, e uma porca prenhe, com a barriga cheia de pequenos porquinhos. Pesada, a ponto de parir, (sunk in deep maternal bliss), ela não oferece resistência. O canto de morte entoado pela tribo de Jack deixa claro que o porco é uma porca (o possessivo está no feminino, sutileza possivelmente perdida em tradução: kill the pig, cut her throat, spill her blood).

4. You’re all British, aren’t you?

A identidade coletiva do grupo de náufragos é sugerida ao longo do romance. Ralph reporta-se à sua memória, à continuidade com a vida normal antes da queda, como confiança. O pai dele é oficial da Marinha Real, e lhe disse um dia que a rainha tem uma sala com mapas de todo o globo, e que não existe nenhuma ilha desconhecida. Eles certamente serão resgatados. Jack joga com a identidade coletiva de modo fraudulento, como falsa confiança que ele deseja ser-lhe depositada pelo grupo. Jack é o personagem insincero da patriotada, do “último refúgio dos canalhas”. Logo depois de dizer que a lei da concha não vale no topo da montanha, Jack contemporiza: mas eu concordo com Ralph, Precisamos ter regras e obedecer, porque não somos selvagens. Somos ingleses, e os ingleses são melhores em tudo!

A identidade coletiva retorna na cena final, em que o oficial da marinha que os resgata pergunta a Ralph sobre as baixas que tiveram. Ao ouvir de Ralph que dois meninos foram assassinados, o oficial comenta: I should have thought that a pack of British boys – you’re all British, aren’t you? – would have been able to put up a better show than that. (em tradução de Geraldo Galvão Ferraz: Eu imaginava que um grupo de meninos britânicos … vocês são britânicos, não é … seria capaz de apresentar um espetáculo melhor que esse … ” Ralph responde que no começo tudo ia bem, “antes que as coisas” … (silêncio). Isto é, “Estávamos reunidos então”, silêncio. Essa é também a primeira vez em que Ralph se permite chorar. O fim do romance revela o drama, mas não é uma cena de ação, tanto que foi cortada na versão de Harry Cook para o cinema, por mais excelente que tenha sido como filme de ação. Pelos preconceitos de hoje, Golding seria “cancelado” como eurocêntrico por ter escrito essa memorável cena final. Mas ela não tem nada de canalhice ou patriotada. É uma reflexão, mas não sobre a natureza humana. É uma reflexão sobre a fragilidade da civilização, diante do poder de Behemot.

As sucessivas vitórias de Behemot na história moderna são vicissitudes do instinto de morte que apela para a rebelião do Corpo contra a dita hipocrisia da alma (do espírito). Mas a democracia é algo espiritual, não é algo corpóreo. Onde consegue sobreviver, é Leviatã quem protege nosso corpo, porque cultua o narcisismo primário e o sentimento de respeito pelo outro, assim como por si mesmo (Selbstachtung). Dois exemplos ilustram a diferença de relacionamento com o corpo entre os dois titãs.

Behemot fomenta a guerra civil e a guerra civil tem duas filhas: a fraude e a violência. Behemot despreza o corpo do outro por fraude e por violência. No modo fraudulento, Behemot professa o lema dos estelionatários: se o mundo quer ser enganado, enganemo-lo. Mundus vult decipi. A fraude era prática cotidiana dos reis continentais, entre os quais os reis da casa dos Stuarts, em especial Charles II, engajado, como os reis continentais, na prática das curas pelo toque de suas mãos. Charles II, entre 1660 e 1664 tocou com sua mão real aproximadamente 23 mil pessoas.10Sigmund Freud percebeu a fraude, e observou em sua monografia Totem e Tabu, que essa prática ficou no passado, desde que o

cético Guilherme III, príncipe de Orange que se tornou rei da Inglaterra depois da expulsão dos Stuart, se recusou à magia; a única vez em que consentiu esse contato ele o fez com estas palavras: “Que Deus vos dê uma saúde melhor e mais entendimento”.11

Mas Behemot também despreza o corpo do outro por violência racionalizada pelos fins, como na prática da tortura continental. Juristas continentais apressam-se a desmentir o fato histórico de que a tortura jamais foi praticada na Inglaterra, como mais um mito inglês. O juiz Gabriel Tarde foi um deles, que escreveu que os ingleses se regozijam de nunca ter usado a tortura, desde Eduardo I, mas isso não seria verdade, porque também eles começaram a praticá-la com o nome de peine forte et dure. Ao que ele comenta: bem que eles poderiam ter importado coisa melhor do que a tortura continental, e nós poderíamos ter passado bem sem importar a porcaria do júri inglês.12

Mas o desmascaramento de Gabriel Tarde não é verdadeiro. A Inglaterra não usou tortura como método de prova pela confissão. A chamada pena forte et dure consistia em deixar o acusado na prisão à base de pão e água, e era aplicada ao acusado que recusasse a escolha entre “plead guilty” ou “not guilty”, caso em que seria levado ao júri. Até o século XVIII, o acusado tinha uma terceira opção, recusar-se à escolha, situação em que se entendia que se recusava a ser submetido ao júri de seus pares, recusava-se a reconhecer a lei da terra. Nesse caso, se o acusado morria na prisão ‘dura’, havia uma consequência patrimonial relevante. Se fosse julgado e condenado, seus bens seriam expropriados. Mas se morresse sem aceitar o júri, não seria condenado, e seus bens passariam a seus herdeiros.13 Em suma, a peine forte et dure não era refresco, mas não era tortura no sentido continental, inclusive porque ninguém encostava no corpo do acusado.

Chegamos então ao nosso segundo argumento. O Senhor das Moscas não é uma contraposição dogmática entre civilização e uma suposta barbárie primitiva, em estado de natureza. É melhor do que isso, porque nos dá a conhecer os dilemas de nossa fragilidade. O subterrâneo bárbaro eternamente presente na civilização também está em nós, pronto para nos destruir, ele não vem de fora. O princípio da barbárie, de Behemot, é o desejo de morte, e a morte da democracia liberal não vem do exterior, ela “está no meio de nós”. A narrativa de ficção de Golding apresenta, de modo simbólico, uma verdade atual para nós: os dilemas de nossa revolta dos coxinhas, nosso duelo contemporâneo entre dois titãs: um deus mortal, o Leviatã, e outro deus imortal, o coletivo Behemot. A tragédia de Ralph é revelada apenas no diálogo final. A gente tentou fundar uma cidade, a partir de uma fugaz lembrança do que seria uma democracia liberal, como a sociedade da concha. Com sabedoria, Golding a descreve como a mais frágil sociedade política possível, mas a única que seria capaz de assegurar a vida de todos. Os três protagonistas apontam a fragilidade da democracia liberal, porque é um regime que só conversa, não age e não decide em situações de crise (encenando os fundamentos dos escritos de intervenção de Carl Schmit, da década de 20 do século XX). Mas a crítica de Ralph e de Porquinho é diferente da crítica de Jack. Ralph ironiza a lei da concha, desde o começo, quando descreve as assembleias, que todos curtem, porque podem com toda solenidade dizer que deveriam construir um avião, ou um submarino, ou uma televisão, mas assim que a reunião termina, trabalham por cinco minutos e desaparecem ou saem para caçar. Mas Ralph ingenuamente chama uma nova assembleia assim que Jack rouba os óculos de Porquinho, para que todos votem se aquilo estava ou não direito. Jack despreza a lei da concha, porque não vale a pena perder tempo ouvindo os pequenos, Simon, Bill e Walter. Esses devem ficar calados e deixar as decisões para nós. Esse nós ainda inclui Ralph, porque Ralph é formalmente o chefe. Na sequência, Jack manobra para derrubar a democracia com as armas da democracia. Jack chama uma assembleia, e pede uma segunda votação, uma espécie de impeachment de Ralph. Com a palavra, Jack mente, dizendo que Ralph fez graça dos pequenos, que têm medo dos monstros, alega que Ralph fala do mesmo jeito que Porquinho, e por isso não é um bom chefe, ele não é um caçador, é um covarde, que ainda por cima dá ordens e espera que todos obedeçam, mas tudo com ele é só conversa (argumento clássico, de Carl Schmitt, em crítica à democracia liberal).

Jack perde a segunda votação, mas consagra com sua derrota que a lei da concha não vale mais para sua tribo. Porquinho reclama da lei da concha apenas quando the rule of no law já se estabeleceu, depois que a tribo de Jack rouba seus óculos. Porquinho lembra que votou em Ralph para chefe e ele precisa fazer algo, não ficar só de conversa. Porquinho então decide, vai pegar a concha e ir até a tribo de Jack e dizer a ele: você é mais forte, e também não tem asma, eu não lhe peço o favor de devolver meus óculos, você tem que devolver meus óculos, porque o que é direito é direito!

Na ficção é permitido encerrar o drama com intervenção externa, como um deus ex machina. O drama deixa no espectador um gosto amargo. Porque em nossa experiência de guerra civil não existe salvação desde fora. Precisamos forjar nossa própria salvação.

Algo que podemos fazer é começar a compreender por que as crianças menores se apaixonam pelo tirano. Sigmund indica um caminho: como todo totem, o Senhor das Moscas talvez não seja outra coisa senão um “substituto do pai”.14 O totem é poderoso e sedutor, porque funciona para alguns como poder redentor, que lhes dá vida nova. Encurta caminhos, facilita carreiras, elimina concorrências, favorece a autoestima de frustrados que invejam e se vitimizam. No começo o tirano cobra apoio, ou voto. Se lhe surgem dificuldades, pede mais do que lealdade: não só que seguidores denunciem amigos, pais, irmãos ou filhos, como traidores ou suspeitos, mas que também roubem, matem ou morram em martírio. Como numa organização criminosa, a filiação ao tirano revoga quaisquer outros vínculos sociais, e tem por afeto societário a culpabilidade compartilhada, que lava a culpa de cada um, transportando-a para a engrenagem.

Desde que a Revolução instaura no mundo algo completamente novo, também a tiranofilia pós-tradicional será novidade. Porque depois da fundação somos todos adultos e livres. Alguns de nós escolherão livremente sua servidão, a menoridade auto-infligida a que se referia Immanuel Kant. O enigma instrutivo d’O Senhor das Moscas é a pergunta: Como se pode perder a liberdade, em liberdade?

Aqui encerramos, ou interrompemos nosso almoço imaginário. Ainda com mais perguntas do que respostas.

E aqui ficamos

todos contritos,

a ouvir na névoa

o desconforme,

submerso curso

dessa torrente

do purgatório…

Quais os que tombam,

em crimes exaustos,

quais os que sobem,

purificados?

Cecília Meireles, Fala aos Inconfidentes Mortos, Romanceiro da Inconfidência, 1953.

1Ernst H. Kantorowicz, Os Dois Corpos do Rei: Um Estudo sobre Teologia Política Medieval, Trad. Cid Knipel Moreira, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pp. 268-269.

2G. W. F. Hegel, Phenomenology of Spirit, Trad. A. V. Miller, Oxford, Oxford University Press, 1977, p. 360.

3Agnes Heller, Die Welt der Vorurteile: Geschichte und Grundlagen für Menschliches und Unmenschliches, Wien/Hamburg, Konturen, 2014, p. 155.

4Agnes Heller, A Philosophy of Morals, Oxford, Basil Blackwell, 1990, p. 223.

5Cf. Agnes Heller, The Time is out of Joint: Shakespeare as Philosopher of History, Lanham, Rowman & Littlefield, 2002, p. 278.

6Imre Kertész, Fatelessness, Trad. Tim Wilkinson, New York, Vintage, 2004, pp. 201, 241.

7Cf. cap. 4, The Absolute Strangers, in Agnes Heller, The Time is out of Joint, op. cit. pp. 75-88.

8William Shakespeare, Complete Works, Ed. Jonathan Bate e Eric Rasmussen, Houndmills, MacMillan, 2007, p. 1305.

9Agnes Heller, The Time is out of Joint, op. cit., p. 256.

10Cf. Carl Schmitt, The Leviathan in the State theory of Thomas Hobbes: Meaning and Failure of a Political Symbol, Trad. George Schwabb e Herna Hilfstein, Chicago/London, The University of Chicago Press, 2008, p. 54.

11 Sigmund Freud, Totem e Tabu: Algumas Correspondências entre a Vida Psíquica dos Selvagens e a dos Neuróticos, Trad. Renato Zwick, Porto Alegre, L&PM, 2013, p. 87.

12 Gabriel Tarde, Penal Philosophy, Trad. Rapelje Howell, London, William Heinemann, 1912, p. 436.

13 Cf. John Langbein, Torture and the Law of Proof: Europe and England in the Ancien Régime, Chicago/London, The University of Chicago Press, 1977, pp. 74-75.

14Sigmund Freud, Totem e Tabu, op. cit., p. 215.


Contingência e Revolução n’O Senhor das Moscas

Imagem de capa de Michael Walzer, Exodus and Revolution

Bereshit bara Elohim

No começo… Tudo inicia no começo. As verdades da Bíblia situam-se no plano do Espírito Absoluto, não concorrem com a relatividade das ciências. Nenhuma narrativa revoga Gênesis e Êxodo, como manancial de significados para diferentes interpretações e evocações.

No começo foi a queda. Num acidente aéreo, um grupo de meninos foi jogado numa ilha deserta. No final, o protagonista Ralph, o menino justo, chora pela primeira vez. Golding parece ter em mente o livro do Gênesis na descrição da cena: “Ralph chorou pelo fim da inocência, pela escuridão do coração humano, e pela queda pelos ares do seu verdadeiro e sábio amigo, chamado Porquinho”.

A analogia com o Gênesis, possivelmente pensada pelo autor, porém, não se aplica ao romance. Nesse livro, a Bíblia descreve a queda do paraíso pelo pecado original, porque o homem provou do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, e desde então se fez responsável. Mas no novo coletivo de habitantes da ilha, temos dois grupos: os pivetes (littluns), e os maiores, na faixa aproximada dos doze anos, idade na qual já não são inocentes, pois já teve início a formação da personalidade moral. No desenvolvimento do enredo, os protagonistas, Ralph, Porquinho e Jack, conscientemente, escolhem a si mesmos com base no conhecimento de bem e mal que já tinham, ainda que talvez precário.

Mas a metáfora da queda é profícua como parábola para a compreensão da condição moderna. A palavra para traduzir essa condição é “contingência”.1 A contingência não é sinônimo do acidental ou acaso, embora tenha começo com o acidente: a queda do avião faz as vezes do acidente de nosso nascimento em certo tempo e lugar, e não em outro, submetido a uma dupla loteria: genética (pois, acidentalmente, trazemos certa bagagem hereditária, propensões, dons ou dificuldades) e social (acidentalmente, nascemos em berço de ouro ou numa manjedoura). A contingência envolve tomada de consciência. A consciência de nossa contingência é uma condição moderna porque ela aparece lentamente através da destruição da noção de télos, que governava o mundo até o começo da modernidade. A noção de contingência entre os antigos ocupava nichos marginais, como no cosmos de Epicuro e entre os gnósticos. No começo da modernidade, essa noção se desloca bruscamente para o centro. Só entre modernos faz sentido perguntar a uma criança: o que você quer ser quando crescer? Os antigos não perguntavam, porque sabiam a resposta desde a loteria inicial: se fossem bem nascidos, seriam nobres, e toda diferença ética seria uma questão de pouco mais, ou pouco menos, de medida. Ter noção da contingência envolve a perda do télos, que significava acima de tudo proteção. Essa perda desenvolve diferentes reações: alguns terão pânico, outros se regozijarão, pensando ser melhor ter mais liberdade do que menos. Alguns escolherão a si mesmos, modificando sua contingência em destino; alguns deixarão os outros escolherem por si, em atitude que os modernos associarão à inautenticidade.

O que se chama de acidente de nascimento não é contingência; a contingência é um fenômeno moderno, ao passo que o acidente de nascimento é uma experiência pré-moderna. A contingência é, melhor dizendo, a negação dialética do acidente de nascimento. (…) A contingência não anula o acidente de nascimento, mas o transcende, e ainda assim, a contingência não é o oposto do acidente de nascimento.2

Ter noção da contingência pode dar-se num choque. Ao comer o fruto da árvore do conhecimento, Adão e Eva descobriram sua nudez. Na literalidade, a nudez envolve vergonha: o sexo aparece e precisa ser coberto. Metaforicamente, a nudez envolve a noção de contingência. O que se torna visível é o nada que envolve homem e mulher, sua vulnerabilidade, sua nudez. O télos absoluto, que governava a vida interminável do primeiro homem e da primeira mulher, é perdido para sempre. A partir desse instante, é preciso escolher, e também responder por tal escolha. Ou seja, é preciso assumir responsabilidade.3

No romance de Golding, assistimos à queda e ao nascimento da responsabilidade. Com a queda, os meninos são jogados na liberdade, cuja experiência é ambígua. Quando percebem que nenhum adulto sobreviveu, festejam: é possível se divertir, sem obrigações. Mas é também choque: a segurança do mundo antes da queda desapareceu: agora eles não têm deveres de casa, mas também não têm “a proteção dos pais, da escola, da polícia e da lei”. Na metáfora da filósofa, os pré-modernos eram cartas aleatoriamente despachadas em alguma caixa postal, mas com um endereço de destino, ao passo que os modernos são cartas, também aleatoriamente despachadas em alguma caixa postal, mas com o endereço em branco. Esse vazio constitui, para bem e para mal, para gozo ou terror cósmico, a liberdade moderna. No romance de Golding, o momento de descoberta da contingência, como vulnerabilidade, é encenado pelo pivete Percival. Durante o recenseamento dos sobreviventes. Ralph pergunta-lhe o nome, e ele responde “Percival Wemys Madison, Paróquia de Harcourt, St. Anthony, Hants, telefone, telefone, tele- …” E desaba no choro, percebendo não apenas que esqueceu o telefone, mas que vivia em circunstâncias na quais seu endereço era inútil. Percival descobriu que era uma carta, jogada numa caixa postal aleatória, sem nenhum endereço escrito nela. O novo endereço dependerá de um deus ex machina, que venha do mar para sua salvação. Mas se não vier? Apenas um menino cogita essa hipótese de terror absoluto: Porquinho. Se não houver salvação, nós todos morreremos nesta ilha. Fica implícita, nessa perspectiva, a profecia de que, sendo todos meninos, poderiam ter vida breve ou longa, mas, ao fim, a vida da espécie, na ilha, também se extinguiria. A segunda profecia de Porquinho não trata da contingência cósmica, e seu terror, mas da sobrevivência política. O mais frágil dos habitantes sabe que, enquanto não vier salvação, a vida dele depende da contenção do tirano Jack, pela democracia liberal estabelecida no começo, como um novo Leviatã, criado a partir de resquícios de memória da tradição de origem. Todo o drama político do romance está centrado nessa necessidade, e no enfrentamento de renovadas dificuldades que lhe apresentam as vicissitudes do instinto de morte, raiz imortal de Behemot.

Ser jogado na liberdade, ter que assumir responsabilidade por seu destino nas novas circunstâncias, sem a opressão do antigo regime, mas sobretudo sem a proteção da tradição, é experiência que pode ser vertida no imaginário moderno da palavra Revolução, cuja narrativa mestra não se encontra no Gênesis, mas no livro do Êxodo.

Walzer enfatizou essa narrativa mestra como instituição imaginária das modernas revoluções. Segundo Walzer, desde o final do período medieval e primórdios da modernidade, esboçou-se um esquema típico para dar conta da mudança política, cuja história apresenta o seguinte formato:

opressão, liberação, contrato social, luta política, sociedade nova (e perigo de restauração). Nós chamamos esse processo de revolução, mas seu padrão original está na história de libertação de Israel da opressão egípcia, no livro do Êxodo.4

A parábola do Êxodo retrata o último paradoxo, encenado no enredo de Golding, ainda que a fundação da democracia, na ilha dos meninos náufragos, não seja semelhante à democracia popular de Israel, constituída pela aceitação da Lei ou constituição: berit, no hebraico; covenant, em inglês; diathéke, no grego, referido por Paulo na Carta aos Romanos, como elemento distintivo da nação judaica.5 Nessa primeira versão de democracia, não se exige identidade étnica, nacional, de gênero ou de idade, para aceitação da Lei: por isso a Lei é pactuada com todo o povo, e não com algum porta-voz. Essa democracia tem versão moderna na democracia americana, cujo fundamento é o culto à Constituição por indivíduos diferentes em tudo, menos no culto. A Constituição é o mínimo moral que os une, e ela permite que sejam diferentes, desde que unidos sobre esse pilar (pluribus unum), hoje fortemente ameaçado pela pauta identitária, uma vitória de Behemot sobre Leviatã, que desejaríamos fosse passageira.6 Diferentemente da primeira aliança, descrita no livro da Criação e que não admite ser rescindida, a aliança política narrada no Êxodo apresenta diferentes possibilidades, entre as quais a rescisão do acordo, razão pela qual a “lealdade” à Lei joga papel fundamental.7 A libertação da servidão egípcia envolve dificuldades, e pode ser vista como uma nova servidão, porque a obediência à Lei envolve renúncia de liberdades (é significativo que servir ao Faraó, como escravo, e servir a Deus, sejam ações descritas em hebraico pela mesma palavra).8 Uma dessas dificuldades é a saudade do Egito, porque lá, apesar da opressão, havia segurança, e o Faraó dava a seus escravos o que comer. Segundo interpretação de Walzer, Moisés resolveu essa dificuldade negociando com Deus um prazo mais longo de peregrinação pelo deserto, de quarenta anos, que faria com que os filhos da servidão egípcia morressem naturalmente, permitindo que a liberdade fosse uma condição natural de gerações que não nasceram escravas.9 Mas o estratagema de Moisés provou ser insuficiente, porque quem nasce livre pode retornar, em liberdade, à escravidão. Por isso, a identidade judaica é construída sobre o mandamento primordial, que fundamenta a própria Lei, mesmo que nela não esteja explícito: o dever de recordar. Recordai, no imperativo, é a palavra que envolve a identidade judaica, por isso título do ensaio de Yerushalmi, Zakhor. O verbo zakhar, em diferentes declinações, aparece na Bíblia por não menos do que 169 vezes, tendo por sujeito frequentemente Deus ou Israel. Deus comanda que se recorde, ação cujo oposto é o esquecimento.10 Essa recordação não é semelhante ao abusado dever de aprender com a história, porque ela acontece no presente absoluto, como condição sempre renovada. O verbo fundamental, não escrito na Lei, é renovado no cerimonial de cada Páscoa: recordai que fostes escravos no Egito. Tal recordação não diz respeito a um evento histórico, mas a uma condição, da qual decorrem deveres, entre os quais o de não maltratar o estrangeiro, porque também fostes estrangeiros no Egito.

O último paradoxo é retratado no Livro do Êxodo. Nas palavras da filósofa:

O povo de Israel escapou do Egito, onde era mantido escravo. Mas eles se libertaram da escravidão sem precisar lutar pela liberdade, eles a receberam como um presente. (…) Depois de serem liberados da escravidão, eles receberam também a oportunidade de tornarem-se livres. Apenas um povo livre merece uma lei fundamental, a única garantia de igualdade política, como condição para, e responsabilidade pela, constituição das liberdades, aí incluído o cuidado por sua segurança. Mas como eles usaram essa oportunidade de agir como um povo livre? Eles adoraram o bezerro de ouro. Essa história simbólica exemplar repetiu-se muitas vezes na história. Pela última vez, na história recente de alguns países da Europa oriental – como no meu país, Hungria, onde as pessoas receberam a liberdade como um presente de aniversário, e falharam em conservá-la. Entre outras razões, porque estavam acostumadas à segurança da escravidão e adoravam o bezerro de ouro.11

O Senhor das Moscas desponta nesse cenário como um retrato da condição moderna da contingência, de sermos jogados na liberdade como no nada, sem o télos protetor da tradição, mas também como um retrato do último paradoxo, porque uma vez em liberdade, haverá quem escolha retornar simbolicamente ao Egito: no romance de Golding, sob a tutela do menino Jack, o tirano, que promete ser capaz de caçar todos os porcos do mato da ilha, para dar aos pivetes o que comer, ao mesmo tempo em que alegadamente os protegerá de todos os males (e monstros, reais ou imaginários).

Mas a fundação da democracia na ilha de Golding é uma história diferente da fundação da democracia popular em Israel, e modernamente, na América. A fundação da democracia na ilha de Golding envolve personagens que não eram oprimidos no antigo regime, e traziam em sua memória vestígios de uma democracia liberal. Ninguém lhes oferece a Lei, uma constituição ou aliança, para ser honrada. O cenário é inglês, semelhante ao estado de natureza, decorrente de guerra civil, descrito por Thomas Hobbes. Intuitivamente, Ralph e Porquinho sabem que precisam constituir algo parecido com uma cidade, cercada por leis, the rule of law, como proteção contra a lei de Behemot – the rule of no law, a lei da guerra civil, encarnada em suas duas filhas: a fraude e a violência. Essa narrativa exemplar também se repete sob diferentes nomes. Entre nós, no período que buscamos compreender ao longo desta trilogia, o mundo de Jack foi o mundo de Petra, o mundo de Janete, o mundo do Mecanismo.

1 Cf. o capítulo Contingency, no magnum opus de Agnes Heller, A Philosophy of History in Fragments, Oxford [UK], Cambridge [USA], Blackwell, 1993, p. 1-35.

2Id., Ibid., p. 17.

3Id., Ibid., p. 4.

4 Michael Walzer, Exodus and Revolution, New York, Basic Books, 1985, p. 133.

5Cf. o magistral estudo do egiptólogo Jan Assmann, The Invention of Religion: Faith and Covenant in the Book of Exodus, Trad. Robert Savage, Princeton/Oxford, Princeton University Press, 2018, pp. 190, 198.

6 Cf. sobre a autodestruição da América pela política identitária, breve e esclarecedor ensaio de Arthur M. Schlesinger Jr., The Disuniting of America: Reflections on a Multicultural Society, Knowville, Whittle Books, 1991, 91pp.

7Jan Assmann, The Invention of Religion, op. cit., p. 190.

8Michael Walzer, Exodus and Revolution, op. cit., p. 73.

9Id., Ibid., p. 67.

10 Yosef Hayim Yerushalmi, Zakhor: Jewish History and Jewish Memory, Seattle/London, University of Washington Press, 1996

11 Ágnes Heller, “The Last Paradox: ‘We are born free but live in chains’”, Corriere della Sera, 17 ago. 2019, Disponível em https://www.corriere.it/cultura/19_agosto_17/agnes-heller-last-essay-european-forum-alpbach-security-freedom-a972be60-c0d7-11e9-a944-b7ca57037a99.shtml, Acesso em 22 out. 2019.


O Senhor das Moscas – Aproximação

Encerraremos nosso almoço imaginário com a verdade dos poetas. Quando as narrativas do golpe se parecem com ficções, melhor cenário para o desejado autoconhecimento pode vir de uma ficção legítima, como a de William Golding, cujo romance O Senhor das Moscas interpretamos em conversação com Thomas e Sigmund, ou Hobbes e Freud, como são mais conhecidos. 

O Senhor das Moscas não é apenas um grande romance, é também rico cenário para nossa especulação em torno da periculosidade das ideologias, em sociedades modernas, isto é, já de algum modo revolucionadas em suas tradições. O livro é interessante também porque não foi explorado em suas camadas mais profundas. Em sua carreira inicial, foi recebido apenas como romance de aventuras para adolescentes, mais uma história de náufragos numa ilha deserta. Em cartoon de 19 de março de 2018, na revista The New Yorker, Grant Snider fez graça de um personagem que, convidado para uma festa, aproveita a ocasião para examinar o anfitrião pelos livros que encontra na biblioteca. Num dos quadrinhos, o visitante encontra O Senhor das Moscas, e rotula seu anfitrião como aquele que não leu mais nada na vida desde o colegial (stuck in high school).

Um sopro de mudança aparece em 16 de março de 2017, quando Liesl Schillinger, em crônica no Los Angeles Times, descreveu brevemente seu inesperado reencontro com O Senhor das Moscas. A autora havia organizado uma biblioteca de livros contendo distopias, narrativas pessimistas, o contrário das utopias. Para compreender a atualidade política americana, ela passa em revista os volumes dessa estante, contendo desde Sinclair Lewis (It can’t happen here), até 1984, de George Orwell, sem encontrar nela muita inspiração. Então ela decide consultar a estante de seus “clássicos infantis”, guardados para a visita de sobrinhos e sobrinhas (“the preserve of visiting nephews and nieces”). Também para esta crítica americana, o livro de Golding era apenas uma história para adolescentes. Mas o título da crônica começa a reverter os sinais dessa tradição: “A distopia mais relevante em nosso tempo não é 1984 – é O Senhor das Moscas.”2

A intuição da crítica americana revaloriza o romance de Golding como leitura para adultos, mas é equivocada, porque O Senhor das Moscas não é uma distopia. Mas se não é uma distopia, o que será? 

Eis a indagação de nosso ensaio, que não pretende estragar o prazer da leitura, como spoiler, porque o romance de Golding, ainda que venha anunciado na versão cinematográfica como thriller, não é um thriller: é um drama cuja moralidade se revela à segunda leitura, depois de conhecido o enredo. Se o romance não lhe estiver disponível, boa aproximação ao enredo pode ser feita através da versão para o cinema de 1990, dirigida por Harry Cook.

Mas o filme é só uma aproximação, que revela apenas o enredo. Golding merece ser lido, preferencialmente no original. Ao contrário das filosofias e das ciências sociais, que se esforçam por reduzir a homonímia das palavras, a riqueza da arte está na ambiguidade, que se apresenta no romance desde a primeira frase, na apresentação do primeiro personagem.

The boy with fair hair…

Não há como evitar a tradução de fair hair por menino louro. Mas aqui se perde a ambiguidade do original, porque fair, em seu primeiro significado quer dizer razoável, cumpridor das leis, imparcial, justo. O dicionário Encarta registra apenas em terceiro lugar que fair também significa “light-coloured hair or skin“. O autor, de modo ambíguo, descreve Ralph como justo, imparcial, cumpridor das leis. Na sequência, o cabelo desaparece de sua descrição e o autor permite-se uma abreviação, para descrever o menino, ainda sem dizer-lhe o nome, como “the fair boy“. É o menino justo.

Mas que significa o título, O Senhor das Moscas?

O editor brasileiro tentou ajudar seu público, presumivelmente formado por adolescentes, mas acabou interpondo entre leitor e obra um prefácio desastrado, segundo o qual a obra trataria da natureza humana “dividida em três conceitos – a força, o carisma e a inteligência – representados respectivamente por três personagens – Jack, Ralph e Porquinho”. Para explicar o título, o autor do prefácio aventura-se na especulação de que ele seria “um quarto personagem, que seria a junção desses três aspectos anteriores, e que poderíamos chamar de ‘o Gênio'”. Resumindo o enredo, tudo nele seria “dramatização da natureza humana, [em que] esses personagens-conceito se alternam e medem suas forças”.  (Santiago Nazarian, “Apresentação: A força, a inteligência, e o carisma”, in William Golding, O Senhor das Moscas, Trad. Geraldo Galvão Ferraz, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2011, p. 9-10.

Pela dificuldade de interpretação do simbolismo desse livro, podemos perdoar o desastre do prefácio à edição brasileira. O próprio Golding pensava que a obra trataria de rastrear os defeitos da vida em sociedade nos defeitos da natureza humana e que a moral da história seria a conclusão de que o “formato de uma sociedade deve depender da natureza ética do indivíduo e não de qualquer sistema político, ainda que aparentemente lógico ou respeitável.”

Autores de grandes obras não são seus melhores intérpretes. Quando a obra salta para a graça, ela é densa em significados dos quais o autor não faz ideia. Entre autores representativos, é notável que Clifford Geertz tenha enveredado pela mesma trilha, vendo no romance de Golding apenas a superfície do romance de aventuras para adolescentes. Numa observação lateral em seu livro A Interpretação das Culturas, para sustentar sua tese de que a cultura não seria algo adicionado a um animal acabado, ou virtualmente acabado, mas um ingrediente essencial na produção desse mesmo animal, Geertz comenta o teorema de que “não existe uma natureza humana independente da cultura”, com a seguinte referência: “Men without culture would not be the clever savages of Golding’s Lord of the Flies thrown back upon the cruel wisdom of their animal instincts”1 (Homens desprovidos de cultura não seriam os personagens de Golding, em O Senhor das Moscas, selvagens inteligentes restituídos à sabedoria cruel de seus instintos animais). Talvez Geertz refira o livro de aventuras que conheceu na adolescência: se o lesse novamente, possivelmente encontraria, no cenário de Golding, apropriada metáfora para o mundo colonizado em vias de libertação, a cujos dilemas o antropólogo se dedicou. Questionando o truísmo de que a política de cada país reflete o design de sua cultura, Geertz exemplifica o caso da Indonésia, que desde 1945 teve uma revolução, uma democracia parlamentar, guerra civil, uma autocracia presidencialista, assassinatos em massa e um regime militar. Ao que ele pergunta: qual é o design da política da Indonésia? (Geertz, cap. 11, p. 1). Uma resposta possível envolve o último paradoxo, também retratado no enredo de Golding: em liberdade, pode-se escolher perder a liberdade. Nenhum destino é inexorável.  Tal como os meninos da ilha de Golding, o homem colonizado salta, de uma hora para outra, pelo impulso das revoluções, da condição de súdito, menor de idade, para a condição de cidadão, adulto e responsável pelos destinos da nova ordem política pós-revolucionária. Depois dos dias felizes da libertação, aparecem os dilemas da constituição das liberdades, entre os quais a recorrente saudade da segurança da escravidão egípcia. Porque lá pelo menos o Faraó nos dava o que comer.

Na sequência, seguiremos outra via de interpretação, que não verá no romance de Golding nem distopia nem tratado sobre a natureza humana. Seus três personagens principais não são caricaturas para as noções de força, carisma e inteligência, como pensou a edição brasileira. Se por força entendemos poder, cada um dos três personagens principais tem o seu, assim como cada um tem sua fragilidade. Jack, o poderoso, tem inveja de Ralph, porque Ralph foi eleito chefe. Ralph tem inveja de Jack, porque ele tem carisma. Porquinho tem inveja de Ralph, porque Ralph tem um corpo belo, e ele um amontoado de carnes brancas e flácidas. O mais frágil entre os três, Porquinho, tem a posse do instrumento que produz o indispensável fogo, suas grossas lentes de míope. Deter o princípio do fogo é um poder nada desprezível, tanto que na sequência Porquinho será roubado por Jack. Os três possuem inteligência. A diferença é o modo como cada um exerce sua inteligência, em relação a diferentes fins.

A edição de bolso Perigee foi mais generosa com autor e obra. Permite que a gente ingresse no mundo de Golding sem explicação prévia, e oferece modesto pós-escrito com nota autobiográfica do autor, e breves reflexões, que não pretendem esgotar o manancial de sentidos da obra, até porque “um estudo exaustivo de seu simbolismo ainda não foi empreendido” (E. L. Epstein, Notes on Lord of the flies, Perigee premium edition, 2006).

O editor americano pediu a Golding o que hoje chamamos de short bio: uma breve apresentação. Ele disse: nasci em Cornwall, em 1911, fui criado para ser cientista, mas depois de dois anos em Oxford mudei-me para o campo da literatura inglesa. Publiquei um volume de poesias, vagabundeei por uns quatro anos, até estourar a Segunda Guerra, quando me juntei à Marinha Real, onde fiz carreira. Entre outras campanhas, participei das operações do dia-D. Depois da guerra, dediquei-me a ensinar e escrever. Meus hobbies? Gosto de pensar, do grego clássico, de velejar e de arqueologia. Minhas influências literárias foram Eurípides e um anglo-saxão anônimo, autor de A Batalha de Maldon.    

No breve posfácio, Epstein interpreta o título do livro, que não significa o tal Gênio, proposto no prefácio brasileiro, mas tradução do hebraico Ba’alzevuv, vertido como Beelzebub no grego. No sentido religioso, seria um dos nomes do Diabo. Mas esse Diabo, como entidade religiosa, não faz presença na obra de Golding. “O Beelzebub de Golding é o equivalente moderno para a potência dirigente, anárquica e amoral que os freudianos chamam de Id”. Eis aqui um bom começo. Apenas lá pelo meio da narrativa seremos apresentados a quem seria esse senhor das moscas: a cabeça, espetada numa estaca, de um porco do mato caçado por Jack. Se fizermos uma pausa para leitura da monografia de Sigmund, Totem e Tabu, que traz como subtítulo “algumas correspondências entre a vida psíquica dos selvagens e a dos neuróticos”, perceberemos que o Senhor das Moscas é um totem. Quem o reconhece adquire identidade nova, de pertencimento ao grupo de Jack, que na sequência do romance formará uma facção, unida por vínculos ancestrais, em guerra civil contra a cidade, fundada na praia por Porquinho e governada, democraticamente, por eleição, por Ralph. Eis que o  romance de aventuras, em leitura para adultos, começa a revelar-se como conflito trágico entre dois titãs: Leviatã, o deus mortal do Mar, e Behemot, o deus imortal de Terra. 

Epstein encerra suas notas sobre O Senhor das Moscas sugerindo que o romance contém uma filosofia oculta. Mas arte e filosofia relacionam-se com a verdade de modos diferentes. A arte a expressa, por inspiração ou desígnio divino (theîa moîra, segundo Platão, no Íon). A filosofia pensa a verdade, e por isso a noção de genialidade lhe é estranha: não é um elogio chamar um filósofo de gênio. Mas a grande obra de arte permite ser pensada pela filosofia, sem que sua verdade seja maltratada pela crítica literária, que na expressão de Benjamin é sempre algo como a câmara mortuária da obra de arte. Podemos ler em Shakespeare, pelos olhos da filósofa Agnes Heller, uma filosofia da história, uma filosofia política e uma filosofia da personalidade, sem precisar conferir a Shakespeare “o duvidoso título honorífico de filósofo” (Agnes Heller, The Time is out of Joint, Shakespeare as Philosopher of History, p. 2. Também podemos, inspirados no ensaio magistral da filósofa, receber como um desafio o lamento de Epstein, de que Golding ainda não tenha recebido uma interpretação filosófica que lhe faça justiça. Esboçaremos no presente ensaio uma leitura do romance de Golding como filosofia da história, filosofia política e filosofia da personalidade, seguindo os passos de Agnes Heller, em seu ensaio sobre Shakespeare. Epstein tem razão em sugerir que o cenário e os personagens de Golding podem ser interpretados numa filosofia, como “figuras”: 

(…) os meninos da ilha são figuras numa parábola ou fábula que, como todas as grandes parábolas e fábulas, revela ao leitor uma conexão íntima, desconcertante, entre sua narrativa, aparentemente inocente e contada para passar o tempo, e a grandiosa, e bem pouco apreciada, profundidade do seu interior.

Os personagens de Golding são individualidades, com densidade existencial, virtudes e vícios. Mas também são representativos de diferentes formas ou configurações de consciência. Nossa aventura é descobrir, pela especulação, o que dizem essas formas, através das quais descobriremos também uma moralidade diferente daquela entrevista pelo autor.

Para leitura do romance como filosofia da história, elaboramos seu cruzamento com narrativas exemplares, na seguinte sequência: (i) o Antigo Testamento; (ii) a tradição grega de democracia e sua idiossincrasia inglesa, na doutrina dos dois corpos do rei; (iii) o processo pós-revolucionário de  autodestruição da democracia, na narrativa mestra do jacobinismo. Para leitura de sua filosofia política, as figuras do romance representarão (i) a fragilidade da democracia liberal, simbolizada na figura do Leviatã, deus mortal cujo elemento é o Mar, em duelo de titãs com (ii) o instinto de morte, irrupção dos poderes do subterrâneo, do coletivo imortal, na figura de Behemot, cujo elemento é a Terra.

Para leitura do romance como filosofia da personalidade, veremos os três protagonistas como indivíduos contingentes que escolhem, em liberdade, seus destinos. Temos no palco não um, mas três heróis de três diferentes tragédias: (i) Ralph, o menino justo, escolhe ser fiel à democracia liberal, e permanece fiel a seu destino até a última instância, sob o risco de sua própria vida; é um misto de herói romano e cavalheiro inglês, mas, sobretudo, personalidade que se sobressai na hierarquia da bondade, como o Horácio de Shakespeare. Ralph é protagonista de sua tragédia, a  de sentir-se culpado, mesmo sem ter culpa, pelo fracasso da democracia,  fracasso que termina por levar à morte os meninos Simon e Porquinho. (ii) Jack, o tirano, representa a escolha do mal pelo mal, como um Ricardo III. (iii) Porquinho representa o “estrangeiro absoluto”, ele é protagonista de um drama de assimilação fracassada, como Shylock e Othello, em Shakespeare.